Uma das alegrias da idade madura é que pouco a pouco ela nos vai dispensando do recurso à palavra (do uso diário da palavra como se ela fosse pasta dentifrícia ou sabão). O corpo, em companhia do espelho, se exibe ao próprio corpo. A maturidade é concreta e é material.
Ao se mirar no espelho é que o ser humano decide ir se despedindo pouco a pouco de sua atuação em público.
O indivíduo se ensimesma? Sim. A atitude pode ser pequena ou grandiosa, depende do caso. Mas há algo de comum no ensimesmamento. O ser humano maduro se lembra e representa a si como tendo percorrido uma série de fases da vida. Infância, juventude e madureza. E a lhe aguardar, está a velhice.
Pela exigência natural de percurso pelas várias fases do ciclo da vida é que somos todos semelhantes a outros tantos e diferentes viventes.
Como a velhice está a espreitar o ser humano em idade madura, acontece que o corpo se confina em ambiente presidiário, onde mora, independentemente da pandemia que nos atinge.
Se ao amadurecer, o corpo humano se conjuga na clave do confinamento, isso não quer dizer que tenha chegado a uma forma de exemplaridade física e mental, que lhe dá direito a ditar regras de costumes de vida e de conduta cidadã. Miseráveis os que usam e abusam dos tuítes.
Prefiro me referir a outra fala conselheira, também concreta e próxima de nós. A da árvore que vejo da janela. Uma amendoeira. Sua fala se refere a todos os seres humanos, indistintamente, e talvez seja por isso que tenha se tornado desprezível. Escutemos a fala (seria esse o substantivo correto?) da amendoeira.
No momento, elas estão com as folhas verdes prestes a amarelecer. Diante da evidência das folhas verdes que se amarelecem, pouco vale a singularidade ou a exemplaridade de uma ou de qualquer vida humana. Em poucas semanas as folhas amarelas — se cantadas pela voz de Yves Montand — serão as “feuilles mortes” que atapetam os cais do rio Sena.
Não há como o ser humano escapar do ciclo de vida da amendoeira, repito. Por ele passamos todos que temos a chance de viver mais anos. Com a ajuda do espelho e da janela, quem sabe se não percebemos que as folhas verdes, que ganham os vários tons do amarelo, são semelhantes à boca que se silencia para que se abram “os olhos de escutar”, como escrevia o Padre Antônio Vieira.
O rosto do ser humano maduro é olhos e sua imaginação, contemplativa.
Em crônica, Carlos Drummond de Andrade abre a janela de seu apartamento na rua Conselheiro Lafaiete para dialogar (seria esse o verbo correto?) com as folhas do pé de amendoeira que, vistas verdes, se tornam — sem que o poeta estivesse realmente a perceber a mutação — amarelecidas.
Da janela, Drummond se dá conta que a árvore é o próprio amadurecimento material e silencioso de seu corpo (se houver algum ruído ambiente é o atiçado pelo vento outonal). Seu corpo dialoga com o silêncio das folhas que amarelecem e é da amendoeira que vem a fala que, para ser mais autêntica, cria um neologismo em português (o verbo outonizar).
“Outoniza-te com dignidade, meu velho!”.
O corpo do poeta está fatalmente afetado pela chegada (in)esperada do outono da vida.
O poeta abre a crônica “Fala, amendoeira” com estas palavras: “Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza — essa natureza que não presta atenção em nós”.
Ledo engano, caro poeta. Esse é o equívoco inicial de toda mente humana (e, de modo geral, do próprio gênero humano). Nós é que, apressados e nervosos, estamos despreparados para viver a vida segundo o ciclo da Natureza, que comporta as mesmas e diferentes e sucessivas fases de nossa vida. Nosso tempo de vida na terra é também cíclico, como as estações do ano.
A imaginação do poeta terá de se destituir do logos, para falar na língua dos antepassados nossos gregos, e aprender que, em silêncio, a amiga amendoeira esteve, está e estará a prestar atenção em nós. Ao nosso ir e voltar da escola ou do trabalho, a nos acompanhar pela rua. Ou a nos observar solitário à janela do apartamento para puxar conversa.
A árvore é bem mais que uma vizinha falastrona de janela. Sob sua copa, estamos sempre a transitar de um lado para o outro. Se atentos e respeitosos, teríamos escutado, em trânsito pelo mundo, a fala silenciosa da amendoeira. Fala que é tão sábia quanto a das palavras da ciência, que trazem o saber à mente humana.
A Natureza não é apenas um lugar que ocupamos. Ela é o lugar que só ocupamos vicariamente, como seus hóspedes.
Nós, a viver no Brasil da Amazônia, não somos em nada diferentes dos povos originários das Américas. Estamos apenas os substituindo, na condição de hóspedes que chegam tardiamente da Europa, da África ou da Ásia, pelas águas do oceano Atlântico. Só somos diferentes dos povos originários porque estamos nos comportando como hóspedes bagunceiros.
Somos tomados pela ganância voraz de hóspedes como se nossa vida não fosse também cíclica. Queremos assassinar quem nos antecedeu para nos julgar os verdadeiros donos do universo. E depois de ter exterminado a eles, queremos exterminar nossa generosa hospedeira — a Natureza.
Machado de Assis é diferente de Carlos Drummond. Acredita que os seres humanos passam pelo ciclo da vida como “cosa mentale”, para retomar a célebre expressão de Leonardo da Vinci. O ciclo da vida se passa como as várias edições revistas e aumentadas de um livro.
Da sua janela no Cosme Velho, Machado enxerga um livro aberto de Blaise Pascal. Nele, os dois observam uma planta frágil, da família das gramíneas, uma plantinha que cresce em plena natureza, à beira dos lagos. Um caniço. O homem é um caniço pensante.
“Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante”, anota Machado em seu romance.
A seus olhos de escutar, a paciência e a docilidade pensantes do caniço não explicam bem a condição humana. Machado sai em busca de uma metáfora que explique o lento ciclo de erros, maldades, arrogâncias, tolices, esquecimentos, teimas e acertos que resumem uma vida humana bem vivida e bem refletida. A produção da vida pelo ser humano é semelhante à vida finita de uma obra de arte. A vida humana é literatura.
Machado pouco tem do Machadinho. É atrevido e sagaz. Em tête-à-tête com Pascal, lhe diz que o homem não é um caniço pensante. “Não; [o homem] é uma errata pensante, isso sim”. E explicita por outra evidência, tão forte quanto a das folhas verdes que amarelecem, que o ciclo de nascimento, amadurecimento e velhice da escrita literária é semelhante ao ciclo por que passa o ser humano que outoniza em obediência ao ciclo da natureza.
Existe, portanto, um outro e concreto ciclo de estações que nos explica a vida. O do livro impresso, que se aperfeiçoa a cada nova edição. Sua editora atende também pelo nome de Natureza, ou Pandora, mãe e inimiga dos autores. Elejam a preferida.
Machado de Assis encerra nossa conversa. “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”.
Silviano Santiago é escritor, professor, poeta, tradutor, com inúmeros prêmios.