Por que o sol ainda brilha? E a Terra, por que continua a girar? As pessoas continuam com seus afazeres, como se nada de mais houvera acontecido. A vizinha do andar de baixo reclama que caiu água em sua cozinha; o rapaz do táxi, atencioso, me oferece álcool em gel; a amiga me pergunta qual a blusa cai melhor: a verde ou a azul?
Ora, o que me importa o verde ou o azul? Somos meio milhão de mortos. Meio milhão de pessoas que ontem estavam e, hoje, não estão mais — e nunca mais virão a estar, nem a ser.
Por que a vida segue normalmente? Aonde vão todas essas pessoas, apressadas, e para quê? “É preciso seguir em frente” — dizem alguns. “A vida continua” — mas não para todos, não para muitos. A vida amputada, a morte desnecessária, a voz sufocada pesam como chumbo.
Tenha paciência, Dona Morte, a senhora já não teve o seu quinhão? O que quer ainda mais de nós? Chega, leve a sua parte e deixe-nos chorar em paz. Quantos mais para que sua fome seja saciada? Já não sacrificamos meio milhão dos nossos em seu altar fúnebre?
E vocês, emissários da desgraça, por que debocham das nossas dores? Por que tripudiam do luto da viúva e dos órfãos? Não sabem o que é o amor?
Pois eu vou lhes contar sobre o amor.
Amor é a mãe que vê se o filho respira no berço, à noite. Amor é o pai que leva a criança ao colo, com cuidado, para que não acorde. Amor são os idosos que já não sabem mais viver sem o outro. Amor é o café da manhã quentinho, é a mensagem de boa-noite, é o “me ligue quando chegar em casa”.
Vocês, que nunca souberam da delicadeza da qual é composto o amor, querem destruir o que nunca tiveram. Meio milhão de amores mortos é pouco para aplacar o vazio de uma alma ressecada. Como Dorian Gray, seus rostos congelados em esgares sardônicos dão a exata medida do inverno interminável de seus espíritos.
Mas nós somos a primavera e, como ela, vamos renascer. Gritaremos a dor, o amor e a esperança com a força de meio milhão de vozes.
Vocês não vão nos destruir!
Cassia Righy é intensivista, médica do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e pesquisadora do Laboratório de Medicina Intensiva da Fundação Oswaldo Cruz. Fez doutorado em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas na Fiocruz e pós-doutorado no Instituto Pasteur.