Tom Jobim era defensor da preservação do Rio, de sua natureza e dos sentimentos mais altos de seu povo. Acabo de estudar sua vida um pouco mais, encargo que sempre me alegra o espírito. Deparei, então, com esta frase: “Esta cidade é um lugar paradisíaco, com essas montanhas, matas, esse céu azul lavado. Mas meu amigo Oscar Niemeyer estava com razão quando me disse que uma cidade só é cidade até 800 mil habitantes”. Outra frase antológica do querido Tom é um clássico de sofisticada observação: “A diferença entre Nova York e o Rio é que lá é bom, mas é uma merda. Aqui é uma merda, mas é bom.”
Ficávamos horas a fio a bater papo ao telefone, quando administradores bisonhos destruíam árvores, aumentavam gabaritos, ou punham abaixo antigos prédios históricos — sem qualquer consideração e com despudor aos pontos de referência e de sedimentação.
Cito exatamente meu saudosíssimo amigo porque empreendi uma campanha pública quando sua morte acabrunhou a cidade, dando margem a administradores sugerirem ideias mil a fim de homenagear memória de apreço unânime. E logo começaram pelo mais fácil e imediato: substituir nomes instalados de logradouros públicos, o primeiro dos quais foi a Rua Visconde de Pirajá. Fui à luta e bombardeei a ideia, revisitando o momento histórico do começo de Ipanema quando (e por quê) o Visconde foi lá instalado. Não faltaram sua consagração e bem querência pública à época e o desejo do novo bairro em reverenciá-lo.
Que imoralidade seria essa, a de deslocá-lo de seu pedestal apenas pela fugacidade do passar do tempo e por ele não mais brilhar por estar morto há tantas décadas? Onde já se viu ousadia tamanha: esquecer os notáveis de seu tempo apenas pelo fato de não estarem presentes? O argumento fez recuar os novidadeiros. Por uma ou duas semanas… outra ideia logo aflorou para tentar derrubar a Vieira Souto de sua avenida faceando o mar onde — oh, quanta propriedade!, diziam os desmiolados — banhava-se a garota de Ipanema. Pesquisei quem foi Vieira Souto, usei os mesmos argumentos de que ilustres e históricos não devem ser apeados de suas glórias e de que, sobretudo eles, os pontos de referência não podem ser removidos porque são objeto de afago e localização dos citadinos. Ademais, as grandes metrópoles sempre respeitaram isso, porque respeitam suas memórias, sinônimo de seus pontos referenciais. Chega de destruir o que ainda resta de referência ao Rio, tão assaltado pela indigência cultural de seus dirigentes e vereadores!
Quanto ao Tom, acabei, eu mesmo, por indicar o Aeroporto do Galeão, porta principal do Rio, para abrigar o nome do maestro soberano, que tanto e tão bem cantou a cidade de São Sebastião. Por quê? Porque ele substituiria apenas um galeão. Não um Santos Dumont…
A dignidade do Rio há que estar sempre presente em nossos corações e ações. Desse modo, quando morrem brasileiros notáveis, eu começo a ficar de cabelo em pé porque logo surgem os bajuladores de ocasião a querer tirar casquinha dos nomes de mortos incensados. Quando, aliás, fiz campanha contra a utilização do nome de Tom para destruir as memórias do Pirajá ou do médico benemérito Vieira Souto, fiz logo clara minha devoção pelo compositor e até minha certeza de que ele, se vivo, estaria a meu lado, como sempre esteve para assinar os incontáveis abaixo-assinados que elaborei para não se destruírem teatros como o Canecão, prédios históricos no Centro, e até edifícios “art noveau” e “art déco” em Copacabana e no Flamengo.
Acima, referi-me à luta que empreendi para salvar o Canecão do desperdício de sua pulverização. Pouco adiantou o abaixo-assinado aprovado pelo grande Barbosa Lima Sobrinho. Cuidados também há de se ter sempre para não pôr abaixo períodos histórico-políticos não apreciados por muitos, mesmo a maioria. Certa vez, participei de mesa-redonda que propôs castrar todos os nomes que nomeavam obras empreendidas pelo longo governo militar. Fui contra, utilizando-me do argumento de que história é história, consolidada em tempo determinado. Varrer-se a história será desrespeito aos pontos de referência — e até aos acontecimentos. Sem pontos de referência, a história pode ficar às portas da barbárie, da intolerância e da truculência, da ditadura de tiranos e caudilhos, que impõem seus humores e o que pensam ser suas verdades.
“Os pontos de referência de uma cidade se bastam; já não carecem ser fotografados ou pintados. Suficiente é tê-los ao alcance dos olhos.” (Toni Morrison).
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.