Se hoje temos medo da Covid, da violência e de virar uma Venezuela, na minha infância os bichos papões eram outros.
Sim, havia o fantasma do Comunismo, mas ele iria sequestrar o país — como fazia com os aviões — e desviar para Cuba.
Muito antes do coronavírus, quem destruiria as famílias era o Divórcio. Parece que ele viria para obrigar os casais a se separar e prejudicar bastante o turismo matrimonial no Uruguai — que era para onde os casais separados viajavam a fim de se casar de novo, não necessariamente com os mesmos parceiros.
No mesmo patamar de ruindade do Comunismo e do Divórcio, e pertencente à mesmíssima quadrilha, tinha a Pílula. Se o Comunismo nos faria ter que dividir tudo (brinquedos, comida, lugar no sofá da sala) com estranhos, e o Divórcio obrigaria nossos pais a brigar em casas separadas, a Pílula impediria que as crianças nascessem, fazendo com que eu parasse de ganhar um irmãozinho por ano.
Por motivos óbvios, eu até simpatizava com esse trio. Afinal, adoraria andar de avião (e ir pro Caribe!), ter duas casas, não precisar dividir a atenção com tanto irmão e, como todo mundo tinha mais brinquedos do que eu, eu sairia no lucro.
Mas não era só isso. Perigos ainda mais insidiosos nos espreitavam. O Espinho de Peixe, por exemplo.
Peixe era um alimento saudável, saboroso e chique. Mas, como tudo na vida, tinha seu porém. Comer peixe era caminhar num campo minado. A cada garfada um espinho poderia vir à tona, do nada, e cravar na garganta. Não era apenas morte certa, mas certa, lenta, inclemente e dolorosa. Talvez por isso, lá em casa só se comia peixe na Páscoa e no Natal — para ver se Deus nos protegia — e nem era peixe de verdade: era bacalhau.
Bacalhau nascia em caixotes de madeira. Não tinha cabeça (devia pensar com o rabo e enxergar com as nadadeiras) nem escama. Chegava à mesa nadando no azeite e seguido por um cardume de azeitonas. E tinha espinho. Muito espinho. Minha mãe e minha avó catavam o que podiam, desfiavam até não mais poder (só faltava colocá-lo já mastigado no nosso prato). E ainda tínhamos que comer em câmera lenta, no modo de Alerta Máximo, com a família inteira a postos para a emergência médica. Digamos que não fosse lá muito divertido.
Manga era a Inimiga Pública número 2, seguida de perto pela ardilosa Jabuticaba. Na época de manga, a ordem era “a manga ou a vida”. Ela era uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde: sozinha, um doce de criatura; misturada com qualquer outra coisa, veneno fatal. Por “qualquer outra coisa” entenda-se qualquer outra coisa mesmo: leite, manteiga, queijo, pudim, banana, maionese e, se bobear, oxigênio. Minha mãe era prova viva dessa malignidade: uma vez, chupou manga e comeu meia dúzia de bananas verdes. Quase morreu. Culpa da manga, claro.
A armadilha da jabuticaba era outra: podia-se levar uma vida normal durante o período de safra, a menos que se cometesse o pecado mortal de engolir o caroço. Sabe o espinho de peixe na garganta? Era fichinha perto do caroço da jabuticaba entalado (não se dizia onde ele entalava, mas a gente intuía). Para piorar, não havia casos de óbito na família por mistura de manga ou engasgo com espinho, mas tinham nome, sobrenome e parentesco definidos os muitos entalados com jabuticaba.
Os demais vilões atendiam pela alcunha de Sereno, Vento Encanado, Pisar no Chão Frio, Banho Depois do Almoço, Engolir Chiclete, Falar a Palavra Raio Na Hora da Chuva e Mastigar Hóstia.
Não espanta que minha geração não tenha tanto medo de Comunista — que, afinal, só sequestra avião, fuzila no paredão, controla os meios de produção e come criancinha. Havia ameaças maiores com que a gente se preocupar.