Meu padrinho de batismo chamava-se João Alcides. Era ferroviário como meu pai, de quem se tornou amigo tão próximo que fui confiado a ele — como é uma das funções de um padrinho — caso meu pai viesse a faltar.
Tenho poucas lembranças de João Alcides, exceto pela nossa imagem lá pelos meus 2 anos, talvez um pouco antes, em foto meio desbotada, clicada antes de ele se mudar de Valença para Belo Horizonte, transferido por seu empregador.
A palavra mais usada na casa de meus pais sobre meu padrinho era “elegante”. Às vezes, lembravam sua gentileza, bom caráter, a maneira atenciosa de lidar comigo, com outras crianças e com gente mais velha. Elegante, elegante sempre.
Em outra foto, onde aparece ladeado por meus dois tios, comprovo: sim, era um homem elegante. Esbelto, altivo, com um olhar confiante e, sim, um homem elegante, tal como falavam meus pais.
Pensei muito em meu padrinho João Alcides nos últimos tempos, desde o início da reclusão pela pandemia, em março do ano passado. Mas ele já me vinha à lembrança desde que comecei a escrever “Amores improváveis”, em 2019.
Na trama do meu novo livro, a filha de imigrantes italianos Emiliana Vivacqua se apaixona por um homem “de pele” — como ela descreve, arrebatada — “cor de jabuticaba”: a cor do meu padrinho, um homem negro.
Não percebi imediatamente como o Felício Theodoro, de “Amores improváveis”, era calcado no melhor amigo do meu pai e bom companheiro dos meus tios.
Agora que sei de onde brotou o personagem central do meu romance, fico grato a meus pais pela abertura de termos à nossa volta pessoas de todas as etnias e origens, mais ainda em Valença, minha cidade natal, onde se abrigaram italianos, japoneses, sírios, polacos, turcos, espanhóis, libaneses, franceses, portugueses e brasileiros vindos de todas as regiões do Brasil.
Espero que “Amores improváveis“ possa ser interpretado, ainda que postumamente, como minha homenagem a uma pessoa jamais referida pelo tom da pele, mas, sim, pelo caráter, gentileza, bondade.
E, inegavelmente, elegância.
Meu padrinho João Alcides.
Edney Silvestre é jornalista e escritor, ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2010, assim como o Prêmio São Paulo de Literatura no mesmo ano, para “Se eu fechar os olhos agora”. Seus livros já foram publicados em oito países.
Agora, o autor lança “Amores Improváveis” (Ed. Globo). Além disso, foi correspondente internacional da Rede Globo nos Estados Unidos, onde cobriu os ataques terroristas em setembro de 2001 e a devastação no Iraque. Na GloboNews, Edney criou o programa “Milênio”, com Paulo Francis, e apresentou, de 2002 a 2017, o Globo News Literatura.
Foto: Victor Pollak