Assim que Gilberto partiu, passei a dormir do outro lado da nossa cama. Inicialmente, pensava que a minha decisão tinha a ver com a vontade de estar mais perto dele, de me moldar às marcas deixadas por seu corpo no nosso colchão. Mais adiante, percebi que evitava a experiência de me defrontar com a ausência dele no lugar em que meu corpo já se acostumara a buscá-lo.
Sou feita de matéria resistente. Quando Gilberto foi diagnosticado com câncer de pâncreas, comecei a fazer terapia e aulas de yoga para preparar a mente, o corpo e o espírito, pois compreendia a magnitude do terremoto que nos aguardava. Cuidei do coração, derramando todo o meu afeto sobre aquele que sabia ser o grande amor da minha vida. Seguimos assim ao longo dos 10 meses da doença, amalgamados em um abraço até o último minuto.
Depois que ele se foi, não tive medo da dor, por entendê-la inevitável; o que me apavorava era a ameaça do vazio. A cama vazia, a casa vazia, os dias vazios, o risco de me deparar com uma vida vazia. Já precisava me esforçar muito para anestesiar o buraco aberto em meu peito. Tinha receio de deixar o vácuo me tomar por inteiro e me dragar para suas profundezas.
Segui meus instintos e fui me preenchendo com o que me trazia conforto, prazer e sentido. A mudança de lado mitigou a sensação da cama vazia. Reorganizei os espaços internos da nossa casa para dar novas funções aos ambientes que eram primordialmente ocupados por ele e escancarei as portas para receber a família e os amigos, ainda que respeitando os cuidados requeridos pela pandemia. Recheei os meus dias com atividades que não tinha tempo para realizar quando ele ainda estava por aqui, como cursos de escrita feminina ou encontros virtuais para mulheres em momentos de transição.
Mas a verdade é que só tive energia para fazer todo esse movimento porque Gilberto se foi, deixando-me encharcada de amor e de propósito. O amor era tanto e foi tão explicitado durante os nossos últimos dias de convivência, que, quando ele partiu, me senti despedaçada e plena na mesma intensidade. Nunca tive tanta certeza da minha potência, nem tanta condescendência com as minhas imperfeições. Fiz uma tatuagem no peito para homenageá-lo e parei de pintar o cabelo, deixando as madeixas grisalhas emoldurarem o meu rosto.
Assim como o amor, o propósito me fez seguir adiante para que continuasse honrando a missão que eu e Gilberto compartilhávamos de contribuir para melhorar o mundo. Nesse quesito, devo admitir que fui salva pelo projeto do livro “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida” (www.ultimosmelhoresdias.com. br), que produzimos juntos e cuja escrita me absorveu durante o período que se seguiu à sua morte. Como foi redentor passar aqueles primeiros meses escutando os relatos que gravamos ao longo da doença e relembrando a nossa história para perpetuá-la em uma narrativa capaz de inspirar outras pessoas!
Descobri o quão importante é registrar a história compartilhada com quem se vai, mesmo sem a intenção de publicá-la, especialmente para poder recordá-la e revisitá-la sempre que a saudade aperta. Foi justamente isso que fiz há algumas semanas, quando se completou um ano da passagem de Gilberto. Deitei no lado que passei a ocupar na nossa cama e reli o nosso livro lentamente, revivendo os nossos dias de cumplicidade.
Terminado o projeto de escrever o livro, fui agregando alguns outros, tanto para benefício próprio quanto coletivo. Consegui passar uma temporada com minha filha, minha irmã e minha mãe, que vivem na Europa e, por conta da pandemia, não tinham conseguido vir ao Brasil me consolar. Deixei que cuidassem de mim e me fizessem todas as vontades.
Havia me afastado das minhas atividades profissionais na área da educação, mas antes mesmo de retornar ao país, comecei a me envolver na construção de um programa robusto de formação de educadores para apoiar a implantação da reforma do Ensino Médio (www.nossoensinomedio.org.br). Por fim, acabei aceitando o convite da Fundação Lemann para criar uma nova organização social voltada a apoiar lideranças educacionais de redes e escolas públicas a promover aprendizagem com equidade.
Paralelamente, criei o Instituto Gilberto Dimenstein (www.institutogd.com) junto com meus enteados Marcos e Gabriel.
Estamos desenhando várias iniciativas para que o seu legado continue a inspirar comunicadores, empreendedores sociais e cidadãos a contribuir com suas comunidades. Nada alegra mais meu coração do que sentir a presença de Gilberto ainda fazendo diferença no mundo. Era assim que ele gostaria de ser imortalizado.
É fato que todos esses passos que consegui dar foram (e ainda são) permeados por muitas lágrimas e impulsionados por uma dose imensa de disciplina. Nada me custa mais do que levantar da cama diariamente e conviver com a dor incessante que me comprime o peito e me extenua as forças. Por isso, no dia em que se completou o primeiro ano da partida de Gilberto, eu me permiti ficar na cama o dia todo, entregue à letargia para descansar do esforço cotidiano de me recolocar de pé.
Para aplacar o cansaço e as feridas, tenho procurado refletir sobre o meu processo de luto, seja escrevendo sobre o que aprendo com tudo isso, seja compartilhando os meus aprendizados com as muitas pessoas no nosso país que também estão perdendo seus entes queridos, especialmente por conta do coronavírus. Somos milhões de enlutados no Brasil, e essa tristeza coletiva nos pede que cuidemos uns dos outros.
Por isso, fico tão tocada quando recebo mensagens de leitores dizendo que o livro “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida” ajudou-os a ter uma outra atitude diante da morte, ou quando as lives e podcasts de que participo inspiram aqueles que ouvem os meus depoimentos. Em meio ao meu doloroso percurso, percebi que é justamente quando me importo e me conecto com a dor do outro que o meu vazio se desfaz e que a minha vida volta a se encher de significado.
Anna Penido é jornalista, educadora e coautora do livro “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida”, escrito com seu marido e grande amor, Gilberto Dimenstein.