A morte dos amigos é sempre dolorosa, especialmente quando se trata de um personagem de bem-querer público, transformado em mito. Nelson, muito justamente o Presidente de Honra da Mangueira, fará muita falta, até pela intensa participação, eu diria de resistência, dentro da cultura popular, da sua Escola e do samba, além da pintura, que, cada vez, é mais valorizada hoje.
Conheci Nelson Sargento desde os tempos dos grupos Os Cinco Crioulos e A Voz do Morro, em que ele se perfilava ao lado dos bambas Anescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, Elton Medeiros e Paulinho da Viola, o mais jovem do grupo (tinha, à época, anos 60, menos de 30 anos) e por quem Nelson sempre guardou uma afeição muito especial. Afeição essa que ele acabou por reiterar, para minha surpresa, a uma provocação que lhe fiz: “Mas você tem uma divindade da MPB que está na frente dos outros em seu coração e que é o Cartola, não é?” “Digo e repito sempre: Cartola parece que nem existiu — foi um sonho bom na vida da gente, mas orgulho mesmo, eu tenho é de ter visto nascer o Paulinho, para a vida e para a música.”
A palavra “orgulho” é muito adequada para definir o sentimento que todos nós, amigos do Sargento, a ele devotamos. E por todas as razões: pelas já alinhadas neste texto e por uma dúzia de outras. Pouca gente sabe, por exemplo, que nosso General do Samba foi também pintor. Tal como Heitor dos Prazeres, ele elaborou uma pintura “naïf” que sempre me enterneceu. Em geral, são paisagens das favelas, cujos primeiros planos estão ocupados por casinhas coloridas. O efeito final desses quadros fez dele um pintor muito interessante, eu diria mesmo tão original quanto o citado Heitor ou o grande Ponteiro de Goiás.
Mas não bastaria a um carioca como Nelson fazer sambas, pintar quadros e tocar violão? Nelson tinha aquele “algo mais” que qualifica o verdadeiro espírito carioca. Ele, acredite ou não, era capaz de se indignar na defesa dos valores permanentes para o Rio. Como Tom Jobim, o nosso “general” sempre ergueu armas contra a decadência dos bons hábitos cariocas. “Você notou como as pessoas andam mal-educadas? Você está sentindo como aquele espírito tão carioca de gentileza anda escapando pelo esgoto?”
Aflito, quase indignado, ele me questionava sobre esses problemas, a mim tão caros. Juntos, praguejávamos; juntos, nos exaltávamos na defesa de um Rio mais amável. Subitamente, Nelson corta a conversa ao me ver mais excitado do que deveria, agarra o violão e canta, como a pontuar toda essa resistência de que ele sempre foi capaz: o samba agoniza, mas não morre.
Nelson Sargento, infelizmente, agonizou ao morrer, por conta dessa pandemia descontrolada e insustentável. No último show que fizemos juntos, levei-o ao lado de Monarco ao auditório da Academia Brasileira de Letras (Projeto MPB na ABL) para repassar em fragmentos a luta de ambos pela vida e suas resistências para sobreviver em um país tão injusto. Foram consagrados pela fina flor da intelectualidade. A morte de Nelson Sargento significa a perda de um mito .
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.
Foto: Daryan Dornelles