O feminino é um lugar irrepresentável, em que os poetas situam a solidão de cada um — um lugar outro, vazio de saber com aquilo que não sabemos de nós mesmos. O campo do feminino é o campo da inquietante estranheza. Esse lugar do feminino é análogo ao do próprio sonho: um lugar que não controlamos. Freud nomeou-o de “Inconsciente”.
A escritora, filósofa, ativista literária e feminista francesa Simone de Beauvoir, que tinha um relacionamento aberto com o filósofo existencialista Jean Paul Sartre, numa de suas escapadas, teve um caso com o escritor americano Nelson Algren, que a pediu em casamento, pois queria dormir de conchinha e ser pai dos filhos que tivessem juntos. Simone, mesmo amando o romancista, decidiu fugir para Paris, ao encontro do seu francês.
Fica a pergunta: Simone seria uma referência feminista se tivesse optado por seu amante americano? Será que ela se arrependeu da escolha? Qual o efeito da negação do feminino, ou seja, casar-se, ter filhos e viver uma vida conjugal?
Com sua atitude, Beauvoir desnaturalizou a maternidade e afirmou que se tratava de escolhas alinhadas com o desejo, e não um determinismo biológico. Imortalizou-se com os ideais sobre a condição feminina, brigando pela igualdade de gênero. Abraçou essa causa tão atual, tornando-se a primeira mulher a falar sobre aborto.
Em “O segundo sexo” (1949), chocou a sociedade, foi xingada de ninfomaníaca, pedófila e tais. O escritor Albert Camus disse que o livro era grotesco e que ela estava acabando com a imagem do homem francês. O Vaticano o proibiu e foi assim que o livro estourou — vendeu mais de 20 mil exemplares, deixando-a rica. Um ano depois, em Chicago, Beauvoir permitiu que o fotógrafo Art Shay a fotografasse nua e de salto alto dentro do banheiro, arrumando-se, e que também divulgasse a imagem (na foto do post).
O que fica muito marcante em sua história é a coragem e autenticidade como escritora e mulher: “A mulher não nasce mulher, torna-se (como disse a psicanalista francesa Julia Kristeva no livro “Simone, Presente”, de 2015). Beauvoir parece ter buscado as respostas existenciais na parceria com o Sartre — ele servindo como grande conector com ela mesma. O feminino é um encontro marcado que nos confronta com nossa alteridade, ou seja, o lugar outro de nós mesmos. Intriga-me o relato do sonho de Beauvoir no seu penúltimo livro, “Balanço final”, descrevendo Sartre como um helicóptero e ela agarrada na aba de seu casaco. Seria essa a posição de submissão que tanto causava estranheza?
Freud refere-se ao feminino, despertando-nos para outra cena, a cena do inconsciente. Penso que a relação de Simone com Sartre foi esse despertar para ambos, um despertar de algo sobre o insondável de seus seres. Na adolescência, Sartre ficou fascinado por “Madame Bovary” (Flaubert) e, ao longo da vida, por Beauvoir. Será coincidência?
Gilda Pitombo é psicanalista, doutoranda em Arte pela UERJ e coordenadora do projeto “Interlocuções” há seis anos, que acontece na Cidade das Artes, na Barra, com uma edição nesta sexta (28/05), a partir das 16h, em bate-papo com a também psicanalista Graça Soares, sobre Simone de Beauvoir.