Fechou a padaria aqui da esquina. Não era lá uma grande padaria — era dessas de bairro, que servem média num copo americano que queima os dedos, e pão na chapa que parece não ter passado pela chapa, mas por um rolo compressor. O cafezinho, que antes tinha retrogosto de cloro, passou recentemente a ter terruá de geosmina. Tudo padrão Cedae Premium — antes da privatização.
O pão tampouco era um primor. Retirado do forno naquele estágio entre o mal assado e o quase ao ponto, sabia a “a próxima fornada não pode esperar”. Nada que mais 15 ou 20 minutos no forno de casa não dessem um jeito.
Apesar disso, eu preferia comprar ali a ir em busca de um pão melhor no supermercado do outro lado da rua. É que havia a moça do caixa.
Ela me lembrava a Frieda, dos quadrinhos do Charlie Brown, com seus cabelos naturalmente encaracolados. E cada dia de uma cor.
Não que ela os pintasse todos os dias. É que o azul marinho da segunda-feira dava lugar — por força do xampu ou da água da Cedae — ao azul cobalto de terça, que desaguava no azul real de quarta, minava no azul turquesa de quinta até mergulhar no azul piscina de sexta — para renascer roxo na segunda seguinte e daí seguir em sua metamorfose cromática até o rosa choque da sexta mais adiante.
O que não mudava era o sorriso. Sorria primeiro com os olhos; se correspondido, o riso se espalhava pelo rosto todo, e fazia a festa quando chegava aos lábios.
Não se limitava a sorrir: dava bom dia. A mim e aos cachorros. Com o tempo, mais aos cachorros que a mim. E dar bom dia aos meus cachorros equivale a me dar um abraço apertado, um suspiro dobrado e amor sem fim.
Ela se encantou pelo Tião. Talvez por falta de opção, porque Duda a encarava com reservas, e recuava quando ela se desencaixava do caixa e ia lhes fazer afagos (aproveitando o momento em que eu, de costas mas atento, garimpava na cesta por um pão menos cru). Suspeito que o faro fino da Duda não aprovasse as emanações da sua química capilar — mas ciúme não deixa de ser uma hipótese a ter em conta.
Com o tempo, começou a falar de si. Tinha também um cachorrinho, um púdol (cachorro, como se sabe, sempre se parece com o dono). Acordava de madrugada para estar a postos, encaixada no cubículo da caixa registradora, às 6h da manhã. Gostava de moedas, porque era difícil ter troco logo no início do dia.
Pois fechou a padaria que tinha uma operadora de caixa que sorria, que cumprimentava clientes e cachorros, que gostava de moeda. Que era o exato oposto do que há do outro lado da rua, no supermercado. Entre o crocante de lá (com a grosseria atávica da atendente e o mau humor crônico das caixas) e o massudo de cá (e a surpresa policrômica diária dos caracóis dos seus cabelos), eu — que não escolho livro pela capa — escolhia o pão pela caixa.
Mas veio a segunda onda da pandemia, e a padaria fechou as portas. Não sei se a mocinha de cabelos furta-cor terá perdido o emprego ou estará alegrando a manhã de fregueses e seus cães em alguma filial distante. Se terá saudades do Tião como eu as tenho dela. Se hoje seus cabelos estarão verde alface, laranja Fanta, amarelo ovo.
Voltei a comprar pão no supermercado — onde, apesar de reclamações anteriores, a rispidez no atendimento (“rispidez” é eufemismo, tá?) continua a mesma. Compro agora uma vez por semana (para ser destratado uma vez só) e congelo.
Hoje foi dia de pão crocante e estupidez da atendente. Hoje foi dia de reclamação (inócua) à gerente. Dia de passar diante da padaria fechada (“Aluga-se. Tratar direto com o proprietário”), suspirar e seguir em frente.
Esqueci como a moça do caixa se chamava, e ela nunca soube meu nome. Se ainda se lembrar de mim, talvez eu seja “o ‘tio’ do Tião” ou (bem melhor) “o moço da Duda”. Ela ficou sendo, para mim, a menina dos cabelos de arco-íris. Artificialmente tingidos, naturalmente encaracolados.