O poeta Murilo Mendes percebeu que a injustiça e a violência são as atitudes mais bem compartilhadas pela espécie humana, animal e vegetal. Em poema, começa pelo diálogo entre a inocência e a crueldade: “A inocência perguntou à crueldade / Por que me persegues? / A crueldade respondeu-lhe: / E tu, por que te opões a mim?”
Em seguida, o poeta dá um belo exemplo de sua descoberta: “A aveia do camponês / queixava-se do cavalo do ditador, / Então o cavalo forte / queixou-se das esporas do ditador.”
Esse poema, escrito à época de Adolf Hitler e Getúlio Vargas, está no livro “Poesia liberdade”.
Não me chamo Murilo, mas sou de Minas Gerais. Há algum tempo, andei pensando que as classes sociais não precisam ser necessariamente definidas pelo sistema econômico em vigor, ou a conta bancária. O riso humano — e mesmo o escárnio e a ironia — estabelece também castas diferençadas, nítidas e definitivas.
Vejam lá se tenho razão.
O parisiense ri do carioca que ri do provinciano mineiro que, por sua vez, ri do caipira.
Tentei dar voz a esse riso inocente e cruel nas minhas memórias da infância. Nasci na cidade de Formiga, no oeste de Minas Gerais. Narrei o que se passou comigo e minha família quando lá morei com meus pais e onze irmãos. Entre os anos de 1936 e 1948.
Inquieto e curioso, o menino não ficou por lá — quis trilhar às avessas a estrada do riso e do escárnio. De Formiga viajei a Belo Horizonte e cheguei ao Rio de Janeiro de JK para me aperfeiçoar em literatura na Maison de France. De repente, com bolsa de estudos do governo francês, lá estava na Sorbonne para fazer o doutorado sobre o escritor francês André Gide.
Se, por acaso, gostar de se divertir com as ironias que Machado de Assis me ensinou, não há muita dificuldade, embora lhe custe alguns reais. Afinal, a inocência tem de se queixar da crueldade e vice-versa; o leitor, do autor; o autor, da editora; a editora, da livraria.
Meu livro de memórias, “Menino sem passado” (publicado eete ano pela Companhia das Letras) está à mão. Transcrevo os dois primeiros parágrafos.
“Nos anos em que as tropas aliadas combatem as forças nazifascistas no mundo e os indignados cidadãos e cidadãs brasileiros sabotam a ditadura Vargas, moro na casa mandada construir por meu pai — ou pelo vovô Amarante — no número 31 da Rua Barão de Pium-i, em Formiga, na região oeste do estado de Minas Gerais.
Devido a perturbações hipertensivas na gravidez, mamãe morre de parto no dia 6 de abril de 1938″.
Silviano Santiago é escritor, professor, poeta, tradutor, com inúmeros prêmios. Acaba de lançar, pela Companhia das Letras, “Menino sem passado”, livro de memórias. Abaixo, uma das imagens do livro: o autor, aos quatro meses de idade, em 29 de janeiro de 1937.
Foto acima: Fábio Seixo