O que existe por trás de um leito de CTI?
Trabalho em terapia intensiva desde a minha formatura, há 20 anos, e sou intensivista titulada há 15 anos. Brinco dizendo que a única coisa positiva da pandemia é que, agora, a minha mãe sabe explicar o que eu faço para as amigas.
Com essa experiência, afirmo, nunca vi nada parecido com o que estamos vivendo desde o ano passado.
O primeiro momento em que percebi a seriedade do que estávamos prestes a passar foi quando recebi, no meu e-mail, uma carta aberta de médicos intensivistas italianos para o mundo. A mensagem era apenas uma: “É real. Preparem-se. Cuidem-se.” Quase podia ouvir as palavras não ditas. “Rezem”.
Desde então, a corrida para preparar os leitos. O hospital onde trabalho, especializado em neurocirurgia, foi imediatamente disponibilizado para o tratamento dos pacientes com covid. Lá ficamos, aguardando virem os pacientes.
E eles vieram.
Estava lá, quando chegou o primeiro doente, o segundo, o décimo… Intubação. Ventilação. Prona. Supina. Diálise. Circulação extracorpórea. Temos médicos que caíram na boca do povo, mas que não traduzem a quantidade de gente e de trabalho especializado, necessários para prestar a melhor assistência possível.
Leito se improvisa, gente não se improvisa. Não se aprende, de uma hora para a outra, a expertise necessária para virar um paciente de 140 kg, intubado, de barriga para baixo. Nem para cateterizar veia e artéria e deixar que uma máquina oxigene o sangue quando os pulmões não podem mais fazer esse papel.
Nunca tivemos intensivistas suficientes, mesmo na época pré-pandemia. Agora, com a quantidade inimaginável de pacientes chegando aos hospitais, o intensivista virou artigo de luxo. E não apenas médicos, mas também enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos; enfim, todos que mantêm a engrenagem do CTI girando.
No Brasil, 80% dos pacientes com covid que precisam de respirador vêm a falecer; a média mundial é de 50%. Nesse cenário, é surpreendente que nossos dados sejam tão ruins?
Nada nos prepara para a morte em série: a morte encarada sozinha; a morte por trás da face shield; os casais que se internam juntos; o filho que, na hora da alta, recebe a notícia da morte da mãe: “Foi só um churrasco de aniversário, doutora.” Nos olhos, tristeza, arrependimento e culpa.
Leito de CTI é ação de contingência; não pode ser confundido com medida de saúde pública, pelo contrário. Abrir leitos de CTI quer dizer que as medidas coletivas falharam.
O nosso CTI foi carinhosamente apelidado de “covidário” — rima com santuário. Junto com as mortes, veio a primeira alta, a segunda, a terceira… Cada alta era comemorada com aplausos. As lágrimas escorriam pelo rosto de todos nós. E com as altas, veio o novo normal.
Novo normal? Três mil mortes diárias é normal?
A vida volta ao prumo. As pessoas voltam ao trabalho; as crianças, às escolas. O vírus já não confere mais glamour — é só mais uma forma de morrer.
Mas nós continuamos. Intuba, prona, supina. Lá, no “covidário”, que rima com santuário.
Cassia Righy é intensivista, médica do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e pesquisadora do Laboratório de Medicina Intensiva da Fundação Oswaldo Cruz. Fez doutorado em Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas na Fiocruz e pós-doutorado no Instituto Pasteur.