Memória no Brasil é caso de polícia. Sei bem disso, venho dedicando os últimos 25 anos da minha vida a historiografar e preservar aquele que talvez seja o nosso maior bem cultural, a nossa música popular, e sei da dificuldade de realizá-lo num país que despreza sua própria cultura. Mas alguém precisa fazer esse trabalho, e sempre passei por cima de todas as adversidades para levá-lo a cabo. Neste ano, lancei-me em novo desafio, igualmente instigante e necessário: radiografar aqueles que batizei de “Os arquivos da cena LGBTQI+ carioca”. Apesar dos retrocessos da atual política governamental do País, os LGBTs conseguiram uma visibilidade inédita. Mas será que a nova geração sabe do caminho árduo percorrido até chegarem até aqui?
Como sempre soube do pioneirismo da cena LGBTQI+ no Rio — com a primeira “Parada gay”, o início do ativismo nacional, primeiro show importante de travestis etc. —, decidi então criar uma série para o meu canal no YouTube. Apesar de o foco ser a evolução dessa comunidade no Rio, ela espelha bastante o País, pois serviu de modelo às suas principais cidades. Produzida pela Lei Aldir Blanc, esta primeira temporada entrevista dez personalidades que fizeram história.
A experiência não poderia ser melhor, e posso dizer que aprendi muito com meus entrevistados. Divina Valéria, a única travesti-artista viva dos dois primeiros shows importantes do gênero no Brasil, “International set” e “Les Girls”, de 64, ensinou que é preciso saber impor sua personalidade sem temores e que por isso conseguiu ser respeitada, sendo a primeira a sair de mulher à rua, no Rio e ousar se hospedar na suíte presidencial do Hotel Glória, sem ir presa.
Com Eduardo Gonzales, o dono das boates gays mais antigas do Rio — o extinto Alfredão e o La Cueva, que existe desde 64 —, aprendi o quanto a nossa sociedade discriminava os gays, a ponto de a polícia chegar às boates, mandar acender a luz e, ao ver um bando de homens juntos, exigir o fechamento da casa.
Com o estilista e ativista Almir França, o papo foi mais intelectual: interessante ouvir sua visão de que “homem” e “mulher” são denominações insuficientes para dar conta da diversidade sexual existente no Planeta, daí tantas letrinhas na sigla que define a comunidade.
Outra ativista, Yone Lindgreen, mostrou o quanto as travestis foram essenciais para a causa — arriscaram a própria vida para defender os companheiros de luta em momentos de truculência policial. Da mesma forma, a cantora e ativista Elza Ribeiro chamou a atenção para o preconceito dentro do próprio meio, dos gays com as travestis, em situação vivida por ela enquanto cantava na boate 1.140, em Jacarepaguá.
Morri de rir com a transformista Lorna Washington explicando como foi sua cruzada até chegar ao estrelato. Filha de um porteiro de prédio em Copacabana, não mediu esforços para acompanhar seus colegas bem-nascidos, conseguindo bolsas de estudo. Sempre “furona”, chegou a dar uma surra num vizinho gay mauricinho que a esnobava.
Meu amigo maquiador, pesquisador e “marlenista” Cézar Sepúlveda contou os perrengues que ele e suas amigas Rogéria, Valéria, Jane Di Castro e outras, ainda homens, sofreram da polícia na Rádio Nacional dos anos 50 e na Cinelândia dos anos 60, apenas por serem gays. Ele próprio foi preso três vezes só por existir de um jeito diferente.
Elaine Parker e Lady Bynydyticha, transformistas do primeiro coletivo do gênero do Brasil, a Turma OK, fundada em 1961, também me comoveram, contando como foi difícil se montar num tempo em que a perseguição à classe era tão forte que nem sequer podiam ter uma sede própria. Apresentam-se em casas de amigos, sem poder aplaudir os shows, apenas estalar os dedos, para não serem denunciados pela vizinhança.
Fechando a série, duas figuras cujas vidas dariam longas-metragens. O ex-Dzi Croquettes Ciro Barcelos explicou como figuras como Gal Costa, Caetano Veloso e Lennie Dale ditaram comportamento, seguidos por toda uma geração desbundada nos anos 70, misturando anarquia, beleza, desprendimento às normas burguesas, “viagens” e bissexualidade.
Finalmente, o ator, cantor, cabareteiro e artista plástico Edy Star, meu grande amigo, continua me surpreendendo. Aos 83, lembrou cada detalhe de suas travessuras desde adolescente, honrando o apelido de “bofélia”, por ser destemido. Uma de suas histórias mais engraçadas foi a vingança que aplicou num bofe que pretendia roubá-lo dentro de casa, achando que, se ele não lhe desse dinheiro, faria um escândalo. Pois quem fez o escândalo foi ele, acordando o prédio inteiro; o cara, desesperado, saiu correndo e nunca mais apareceu. Muito bom saber que toda essa luta dos que abriram caminho para que hoje tenhamos mais direitos não foi em vão e que tantos deles estão aí até hoje, cheios de graça e energia.
Rodrigo Faour é jornalista carioca, formado pela PUC-RJ, com mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. A partir deste sábado (24/04), vai apresentar uma série de dez programas do projeto “Arquivos da Cena LGBTQI+ Carioca”, no canal do YouTube. Conhecido por seus trabalhos como historiador da MPB, também é crítico, pesquisador e escritor — incluindo as biografias de Cauby Peixoto (“Bastidores”, Ed. Record, 2001), Claudette Soares (“A bossa sexy e romântica”, Coleção Aplauso/Imprensa Oficial SP, 2010), Dolores Duran (“A noite e as canções de uma mulher fascinante” (Ed. Record, 2012), Angela Maria (“A Eterna cantora do Brasil”, Ed. Record, 2015) e o best-seller “História Sexual da MPB” (Ed. Record), um estudo pioneiro unindo música e comportamento.