“A paz, se possível, mas a verdade a qualquer preço.” (Martinho Lutero – 1510)
Uma tragédia anunciada, como a cruel pandemia, que já matou quase 400 mil brasileiros em 14 meses, carecia de um esclarecimento público a partir do governo, ou melhor, de todos os que, em algum momento, a roçaram ou tiveram qualquer posição de presença ou ausência, ou até alguma gestão mínima que fosse sobre ela.
Quando a pressão popular exigiu uma investigação parlamentar do que de fato ocorreu, o governo declarou-se contrário e fez tudo para sabotá-la, o que não impediu sua agora concreta instalação com dois senadores desprovidos de carteirinhas de bajuladores profissionais: o presidente Omar Aziz e o relator (o mais importante) Renan Calheiros. Gol para o Congresso.
Há muito, muitíssimo, a esclarecer sobre como o Brasil chegou à situação atual, em vacinar nos últimos três meses apenas míseros 15% de sua população. Em março, Bolsonaro declarou em Uberlândia, para estarrecimento e fúria do País, que — “vai comprar vacina só se for na casa da tua mãe, não tem pra vender no mundo”. Ou seja, o óbvio ululante, perdão, grosseiro. É claro que não tinha mais vacina. Todo o mundo já havia se precavido e comprado. Para mal dos nossos pecados, ele recusaria a seguir a oferta da Pfizer por firulas bobas — isso já não tendo para onde correr.
A essa negativa insustentável, somaram-se vários outros erros extremamente graves de avaliação e nula gestão, como o colapso da saúde em Manaus, com pacientes morrendo por asfixia; ou os gastos altíssimos com a impropriedade da cloroquina, fabricada aos milhões pelo Exército; ou pela negativa obtusa de medidas apregoadas pela OMS, sobretudo afastamento social e máscaras; ou batendo à porta do STF para impedir governantes e prefeitos de impor os lockdowns, prescritos em todo o mundo como a solução final para estancar a expansão do vírus.
Paro por aqui, porque mais 23 acusações contra o governo na CPI da Covid acabam de ser fornecidas pela Casa Civil da Presidência a 13 ministérios no sentido de se antecipar as perguntas óbvias que estão na boca do povo. E que a CPI tem que investigar.
Quando li as 23 acusações, uma a uma procedentes e bem descritas, mal acreditei no que estava diante dos meus olhos. De imediato, pensei no melhor: a minirreforma ministerial operada há apenas uma semana já estava a produzir efeito surpreendente, embora com o pecado de ter mantido o supercriticado pelo mundo, ministro do Meio Ambiente (Ricardo Salles).
Outro pensamento logo me acudia: quem teve a ideia tão rejuvenescedora de fazer a lista, antecipando a própria CPI e praticamente representando tudo o que o povo queria saber e perguntar?
E nós, os jornalistas, os que analisam aqui e acolá os feitos do governo, como acreditar que um presidente reconhecido pela falta de assessoria eficaz, engravidado por cavilosas contradições, errático quase sempre, pudesse autorizar a lista quase confessional à CPI?
Que milagre é esse, tão inesperado, um farol a se acender nas trevas dos erros continuados? E impõe-se a pergunta que não quer (nem deve) calar-se, quem foi o assessor genial que ousou promover essa antecipação?
E mais, pergunto eu: como o Presidente, de quem se tinha a ideia de ser cercado apenas pelo cordão dos puxa-sacos, (que cada vez aumenta mais), conseguiu sair dos delírios habituais e aprovar a lista acusatória, poupando trabalho à CPI a que devotaria hostilidade e até pavor?
A busca das informações solicitadas aos 13 ministérios foi decidida quando a CPI se consolidou. Sabe-se, por fontes não oficiais, de um pequeno, mas vital elemento provocador do milagre inesperado. Muitas das 23 acusações têm como base um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a gestão do Ministério da Saúde na pandemia ao lado de uma investigação do Ministério Público do Amazonas, que teria resultado em ação de improbidade contra Pazuello e outras autoridades da Saúde.
Em resumo, permito-me fazer duas reflexões sobre este finalmente “beau geste” do governo Bolsonaro, apontar uma de suas múltiplas armas liberadas agora para aclarar a sucessão de tragédias da pandemia. A primeira é que a CPI não perca tempo evocando o passado, até porque centenas de milhares de mortes não podem ficar impunes. Os governadores e prefeitos, por seu turno, não podem ser os responsáveis únicos (como quer o governo) pelos efeitos provocados pelos inadiáveis lockdowns. A economia foi, sim, vitimada pelos lockdowns — que cessaram há dias em Portugal e Itália, mas somente depois de derrubados os índices altíssimos de mortes. A economia se retraiu muito. Mas para salvar vidas, mais e mais, destinadas a entupir hospitais saturados. E impotentes. A verdade dói, mas liberta. Já a mentira é capaz de nos aprisionar para sempre.
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.
Charge: Jota A (Sistema O Dia Piauí).