Quem acha que a privatização dos serviços de saneamento, com o leilão da concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio (Cedae), previsto para esta sexta (30/04), vai resolver, num passe de mágica, as décadas de descaso com o tema, está profundamente enganado.
O tamanho do passivo gerado pela criminosa gestão do ponto de vista de seus resultados ambientais é colossal. São bacias hidrográficas transformadas em valas de esgoto, além de baías, lagunas e importantes trechos de praias oceânicas e não oceânicas em latrinas. Em todo esse quadro, resultado de décadas de impunidade ambiental explícita, não há mocinhos, apenas três grandes vítimas: a natureza, a saúde pública e a economia.
Nessa tragédia meticulosamente produzida por inúmeros governos que por aqui passaram, centenas de milhões de reais geraram de tudo em projetos megalomaníacos. Estações de tratamento de esgoto funcionam até hoje com 50% dos equipamentos, como é o caso icônico da grandiosa estação de tratamento de esgoto da Alegria ou da estação de tratamento de São Gonçalo, que nunca funcionou. Pelo menos, eu nunca vi funcionar! Adicionem-se a essas duas as diversas estações onde, em recente voo pelo projeto “OlhoVerde”, não se constata o pleno funcionamento dos seus equipamentos, sendo que estes, claramente, estão, salvo engano visual, em claro processo de sucateamento.
Não há a menor singela dúvida de que quem for assumir esse monumental “abacaxi ambiental”, regado por tudo de pior que se possa imaginar em termos de gestão pública e resultados ambientais, vai gastar muito dinheiro e algum tempo para pôr toda essa estrutura intencionalmente sucateada para funcionar.
Temos, até, a situação da única unidade de tratamento de rio (UTR), criada como produto do tal legado ambiental olímpico, instalada, mas que nunca funcionou no rio Irajá.
Inacreditável como torramos dinheiro público sem retorno algum!
Deve-se destacar que o intencional resultado da degradação sistêmica dos recursos hídricos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – fruto da transformação do estratégico tema saneamento numa máquina de fazer exclusivamente dinheiro e manutenção da boa vida das castas associadas com o produto da degradação – teve e continua tendo uma colaboração valorosa da parte das prefeituras. Tal colaboração se dá na forma da ausência delas no que diz respeito à ordenação do uso do solo, em que planejamento na prática e políticas habitacionais se simplesmente existem, não acontecem!
Sem dúvida, a privatização vai gerar um potencial, hipotético novo tempo, apesar dos perigos, visto que, nesse lugar, quase que absolutamente tudo que envolve muito dinheiro sempre corre o perigo de sofrer severas distorções e perversões que afetam diretamente os objetivos iniciais pretendidos, isto é, saneamento e abastecimento universalizado, com água de boa qualidade e ambiente protegido junto da saúde pública.
Pessoalmente, apesar dos que se opõem à privatização por motivos ideológicos, corporativistas, jogando para a sua plateia, dando exemplos de outros países onde a privatização não deu certo, etc. e tal, como se no Rio, algum exemplo de qualquer outro lugar do universo servisse, visto a situação terminal na qual nos encontramos, considero que pior não fica!
Não vejo como possa ficar ainda pior a situação de degradação sistêmica atual! Chegamos ao Rio de Janeiro no fundo do poço, apesar da inoperância da estatal de ainda buscar aprofundar até o “pré-sal” a crise do recurso água. Tal constatação se verifica na situação do rio Guandu, bacia hidrográfica estratégica, de onde vem a água que abastece boa parte da Região Metropolitana do Rio por meio do tratamento dessa água misturada com esgotos doméstico e industrial. Mesmo tendo ocorrido a primeira “crise da geosmina”, em 2020, após um ano, nada, absolutamente nada que fora prometido foi cumprido, gerando recentemente a segunda crise, em 2021.
Vivemos uma tempestade perfeita que, há décadas, beneficia alguns em detrimento da perda de qualidade de vida de toda a sociedade.
Resta saber se as estruturas públicas de fiscalização e a sociedade que banca a péssima qualidade de serviços prestados (isso quando são de fato prestados) irão sair de sua resiliência, letargia patológica, exigindo dos serviços a qualidade e a cobertura espacial esperada presentes nos contratos a serem firmados.
Não se pede qualquer favor, mas apenas o cumprimento dos contratos!
As bacias hidrográficas, lagunas, baías, praias e a qualidade de vida da população vão dizer, em uma década, se de fato fizemos uma escolha melhor do que a atual.
Destaco que saneamento e qualidade da água para abastecimento são um marco civilizatório de qualquer sociedade, já reconhecido no Império Romano, há muito mais de dois mil anos!
Obs: com esse texto, gostaria de homenagear a memória da geógrafa Patrícia Goes Pereira, morta covardemente com vários tiros em 2015, supostamente devido à sua intransigente postura diante dos desmandos e corrupção em obras públicas. O Brasil não é um lugar para principiantes!