Quatro anos atrás, Belchior morreu, mas, definitivamente, este ano, ele não morre. Não se depender de autores como eu e Marcelo Bortoloti — meu parceiro no livro “Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior” —, de artistas, como Emicida e Ana Cañas e de cineastas, como Eduardo Albergaria e Leonardo Edde, diretor e produtor da Urca Filmes, e o roteirista Daniel Dias, os três responsáveis por “Procurando Belchior”, uma série documental prevista para ser lançada este ano pelo Canal Brasil, na qual eu e Marcelo começamos a trabalhar como pesquisadores (há também previsto um longa-metragem, atualmente em fase de captação).
Não foi premeditada a parceria proposta pela Urca ao ouvir falar no livro que estava para ser lançado e contava exatamente a história que seus diretores queriam narrar. Nem foi premeditado nosso lançamento chegar às livrarias logo depois de os versos “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro” saírem do circuito de apaixonados por Belchior e avançarem para dentro das comunidades e grupos LGBTQIA+ nas vozes de Emicida, Majur e Pablo Vittar. Também não havia sido premeditado começarmos o nosso trabalho na pesquisa/escrita dessa jornada depois da morte do nosso herói. Se o destino não ajudou Belchior a virar santo em vida, ele deu um empurrão para que, com todos os projetos de celebração de sua memória acontecendo ao mesmo tempo, todos nós estivéssemos agora ajudando a fortalecer o mito.
Belchior queria ser santo, diz uma das fontes do livro. Belchior descobriu uma doença e preferiu viver a sonhar, especula outra. A gente não descarta nenhuma hipótese, mas damos liga aos fatos descobertos no nosso caminho: “A sociedade cobrava o preço desta desconexão”. O livro conta a história de um grande artista que decidiu sair de cena, não pensou nas consequências de suas decisões e foi convivendo com elas sem retroceder. Belchior não cortou o bigode nos dez anos em que esteve fora do circuito — muitos vão falar “fugido” ou “sumido”, mas eu prefiro dizer “exilado” — e aproveitou a própria imagem para conseguir abrigos, auxílios, apoios. No entanto, Belchior não estava disposto a ser o mesmo Belchior de antes.
O livro conta a história de um homem e suas complexidades. Mocinho ou bandido? Herói ou vilão? Será que tudo ao mesmo tempo? As dúvidas nos instigavam a ir atrás dele. Queríamos Belchior vivo, contando também pra gente as histórias de sua vida, como fez em muitas casas por onde passou, e, quem sabe, auxiliando esses dois autores a entenderem seu ato. Não deu. Ele partiu quando estávamos em plena pré-produção. Seguiríamos ou não? O destino falou que sim.
O destino também colocou uma modelo trans desfilando em uma passarela e cantando os versos de “Sujeito de sorte” no dia em que Emicida foi assistir ao seu desfile. O destino fez com que Ana Cañas se desse conta de que as letras do artista cearense fossem tudo o que ela queria cantar em 2020 — e a decisão rendeu uma live e um álbum patrocinados através de financiamento coletivo. O destino também fez com que o time da Urca Filmes ficasse intrigado a cada leitura sobre os caminhos de Belchior ao longo dos anos. O destino já havia dado uma palinha em 2017, logo após a morte de Belchior, estimulando o jornalista Jotabê Medeiros a lançar a biografia “Apenas um rapaz latino-americano”.
As canções de Belchior tinham densidade literária e dialogavam também com a música popular do mundo. De João Cabral de Melo Neto a Beatles, havia citação e referência em todos os cantos do seu cancioneiro, obra tão valorizada entre os anos 1970 e 1980 e tão pouco difundida depois dos anos 1990. Se Belchior fosse redescoberto em vida, talvez não tivesse desamarrado os laços e sumido, e estaria gravando com Emicida e topando participar do show de Ana Cañas. Se o destino não ajudou Belchior a virar santo em vida, certamente ele já virou mito depois de morto. Quatro anos atrás, Belchior morreu, mas provavelmente ele nunca mais morrerá.
Chris Fuscaldo é jornalista, escritora, cantautora, formada em Letras, além de mestra e doutora em Literatura. Sua vida é inteiramente dedicada à Cultura, com alguns livros publicados. O mais recente é “Viver é melhor que sonhar — Os últimos caminhos de Belchior”, com Marcelo Bortoloti.