Ela chegou ao hospital, com muita falta de ar. Era jovem, e nada disso tinha acontecido antes. Já estava no 10º dia com covid e, nos últimos dias, a tosse e a falta de ar haviam piorado consideravelmente. A radiografia mostrava, no lugar dos pulmões, normalmente pretos pela repleção de ar, duas massas brancas determinadas pela inflamação pulmonar disseminada.
Não houve sequer tempo para pensar. A dificuldade de oxigenação já lhe roubava, inclusive, parte da consciência — não sabia o que era real ou alucinação. Imediatamente foi intubada por pessoas que não conhecia e de rostos cobertos. Foi sedada profundamente e pronada (manobra em que se coloca o paciente de bruços na cama, para melhor oxigenar os pulmões) ainda na sala de emergência — o que é muito incomum antes da pandemia.
Na chegada ao CTI, poucas horas depois, tempo suficiente apenas para garantir um leito raro e adequado frente a outros que certamente também precisariam dele, ainda havia situação crítica: a oxigenação pouco melhorara e, se nada fosse feito, a morte seria iminente. Ao ser transferida para o leito, a canulação das veias da virilha e do pescoço foi imediata para permitir a terapia de oxigenação por membrana extracorpórea, o hoje popular ECMO.
Dez angustiantes e trabalhosos dias que se seguiram foram história: recuperação progressiva até que se pudesse desligar o aparelho, devolver-lhe a função dos pulmões, já menos doentes e, por fim, permitir que acordasse e respirasse sozinha depois da retirada do respirador artificial.
A introdução dramática é para falar sobre o assunto da moda em tempos de pandemia: a oxigenação por membrana extracorpórea (minha tradução livre para a famigerada ECMO). Essa terapia consiste — numa explicação ligeira e incompleta diante da complexidade do tema — em bombear o sangue extraído de um grande vaso do corpo, forçando-o através de uma membrana que faz as vezes de pulmão artificial, oxigenando-o e devolvendo-o para o corpo por uma cânula inserida em outro vaso.
Pode parecer muito simples, lógico, prático e facilmente disponível, mas não é. Um sem-número de detalhes e complicações potenciais, que vão desde problemas mecânicos com o sistema hidráulico instalado em paralelo com a circulação do próprio paciente, até fenômenos relacionados à destruição das células sanguíneas, sangramentos fatais e trombos podem acontecer e precisam ser vigiados, dia e noite, por uma equipe treinada. O número de profissionais da saúde, sejam médicos, enfermeiros, perfusionistas (profissional que se especializa em cuidar de máquinas semelhantes utilizadas em cirurgia cardíaca) com conhecimento robusto é escasso. Uma Ferrari nas mãos de um mau motorista é mais uma arma do que o melhor automóvel já produzido pela engenhosidade humana.
Não é uma panaceia; o método não é para todos. Explico: esse procedimento só se justifica para pacientes com perspectiva de recuperação dos pulmões. O aparelho é uma ponte entre a situação crítica e intratável pelas vias habituais de suporte artificial respiratório e a completa recuperação para funcionamento autônomo dos pulmões. Pacientes sem essas características são inelegíveis. O uso da ECMO é muito caro e deve ser pensada num período de pandemia em que tudo é escasso: num país em que é rara a disponibilidade de leito de UTI e até de recursos mínimos, como oxigênio e antibióticos, pensar em ECMO como solução é, no mínimo, pueril.
Há quem diga que os resultados do método são questionáveis. Talvez seja questionável esperar resultados incríveis de um método de absoluta exceção, guardado para pacientes gravíssimos e de mortalidade muito alta. ECMO não é exatamente uma novidade — ganhou notoriedade recente, numa tentativa de ser o novo milagre que derrube nossa incredulidade perante uma peste que leva à morte de tantos e tão rápido.
Como escreveu Miguel de Cervantes, “Valentia sem prudência chama-se temeridade”. Esperamos que, nesta loucura pandêmica, não seja usado de forma indevida e pouco criteriosa e que caia em desgraça uma terapia tão poderosa que pode salvar vidas quando bem indicada.
A propósito, a última notícia que tivemos da moça lá da introdução veio por meio de um vídeo de agradecimento à equipe, quando ganhou alta do hospital, dançando um funk. Fiquem bem, mantenham distanciamento, lavem as mãos e usem máscaras.
Felipe Henriques é especialista em terapia intensiva com especialização em ECMO e trabalha no Americas Medical City e INCA.
Rodrigo Hatum é médico especialista em Medicina Clínica e Medicina Intensiva. Trabalha no Instituto Nacional do Câncer (INCa), no Hospital Marcos Moraes e no Hospital Vitória (Americas Medical City).