A Páscoa, com todo o seu simbolismo religioso, faz muitas pessoas refletirem sobre renascimento, ressurreição, mudanças, passagem, renovação. Contudo, enquanto as famílias preparam ceias e mesas fartas, temos que olhar além. Pra mim, falar de renascimento é falar de amor e de vida, e isso, neste momento, é dar comida para as pessoas que precisam. É emergencial. É fazer com que tenha o direito de raciocinar para onde quer andar, porque, com fome, a barriga não espera a cabeça raciocinar. Criei o projeto “Tropa — contra a fome e no combate ao covid” porque sei o que é perder a dignidade: passei por isso.
Nasci na Rocinha e, de 1992 a 2008, estava muito feliz com a minha carreira de músico, tocando com pessoas importantes. Cheguei a fazer parte da Atcon (Associação Atitude Consciente), a primeira de rappers do Rio, formada por MV Bill, Gabriel o Pensador, entre outros. Fiz teatro com Ernesto Piccolo, participei da coletânea Hip-Hop Rio, produzida por Marcelo D2. Fiz muita coisa. Tudo isso foi interrompido pelo meu vício em drogas, e passei a morar nas ruas do Centro.
Em 2016, já no inferno, comecei a lutar para sair daquilo com a ajuda da planta medicinal africana ibogaína, capaz de desintoxicar o corpo e a mente, ajudando no tratamento contra as drogas, mas que produz grandes alucinações. Foi assim que me recuperei totalmente e voltei a conviver com a família, retomando meu trabalho, ou seja, meu primeiro renascimento. O segundo aconteceu em 2020, quando criei o “Tropa da Solidariedade”, para distribuir quentinhas orgânicas e material anticovid para moradores de rua, no Centro e na Lapa. Atendemos 5 mil famílias! Com o sucesso da ação e da rede que criamos, ganhamos um espaço na Lapa, para nos instalarmos, termos uma sede, onde faremos uma série de oficinas, cursos, acolhimento, tudo voltado para essas pessoas.
Quero vê-las de pé. É por isso que eu sonho, que eu luto, que eu acredito que a melhor forma de a gente contrapor, de resistir, de superar, de mostrar quem somos, é estar de pé, dignos, com saúde, força e esperança. Essa é a minha força. É uma renovação da esperança. Hoje tenho minha casa, tenho minha dignidade e, da mesma forma, luto por ela a toda hora. Recentemente, indo cedinho ao Centro da cidade, vi, às 7h da manhã, pessoas em uma fila em frente a um órgão do governo, esperando um tíquete para o almoço. Observei as senhoras mais velhas pedindo socorro só com o olhar. Vi gente sem nenhuma expressão. Quer dizer, não tem mais café da manhã. A pessoa está esperando na fila pra não perder o almoço — sem esperança, sem respeito, sem humanidade, igualzinho a botar todo mundo em uma câmara de gás. Nada diferente; só estão matando de uma outra forma. O racismo é isso, vem a toda hora. Vem através da fome, da violência policial, de várias formas. E agora vem, incessantemente, através da fome. ‘Não gosto de você. Vou te matar de fome. Quero matar você à míngua. Quero matar seu povo à míngua’.
Por isso, luto e sonho porque essas pessoas precisam estar de pé, de cabeça erguida, geladeira cheia e mesa farta, com sua casa, com filho no colégio, com respeito, com dignidade e com o semblante de esperança. Nossa primeira ação será neste sábado (03/04), quando nosso grupo de voluntários vai se reunir na Casa de Luzia (Rua Evaristo da Veiga, 149, esquina com Joaquim Silva, Lapa), para lavar e cozinhar os alimentos comprados de pequenos agricultores e preparar as quentinhas que serão distribuídas no mesmo dia. Nos próximos finais de semana (10, 17, 23 e 24 de abril e 1º de maio), esperamos ter mais recursos. Com a doação das pessoas, vamos também distribuir cestas básicas, sempre com alimentos sem agrotóxicos e material para o combate à covid, como álcool em gel, material de limpeza e máscaras. Além disso, também pretendemos ampliar essa ação para moradores de favelas cariocas. É lindo ver as doações e as pessoas todas trabalhando pelo bem das outras. Isso, sim, é amor, é vida, é renascimento!
Schakal é um dos nomes da cena do rap underground carioca da década de 1990, sendo considerado “professor” por muitos rappers da cidade. Trabalhou com Marcelo D2, Nação Zumbi, Racionais, MV Bill, Gabriel Pensador, Planet Hemp, B Negão, Black Alien, Seu Jorge e Hypnotic Brass Essemble. Criou o “Tropa da Solidariedade” para distribuir quentinhas, cestas básicas e produtos de higiene na Lapa. Agora o projeto ganhou sede na Lapa. Para doar qualquer quantia, acesse o site.