“A história se repete — a primeira vez, como tragédia e a segunda, como farsa.”
Da tranquilidade da Ilha da Madeira, onde tento esconder-me do Covid-19, observo o Brasil pela Internet, e a frase do velho Marx se impõe. Recebo abismado (ainda me abismo, na minha ingenuidade persistente, apesar dos meus incompletos 60 anos de idade) a notícia de que o ex-presidente Fernando Collor é agora uma espécie conselheiro econômico não oficial do governo Bolsonaro. Assim, essas duas figuras, cabeças de duas eras muito semelhantes, se encontram e se associam. Pensando bem, era inevitável que isso acontecesse, era só uma questão de tempo. Nasceram um para o outro.
Esse encontro Collor-Bolsonaro encontra eco na minha vida atual. Na rotina surreal dos nossos dias, eu ensaio a minha peça “De Bar em Bar”, que foi escrita baseada nas minhas recordações da era Collor. O processo da montagem da peça me faz revisitar, mais uma vez, memórias da era Collor, do jovem que eu era durante os anos 80 e 90, em face às notícias do Governo Bolsonaro que recebo do Patropi.
Ensaiamos num mundo cada vez mais atomizado, com cada um na sua casa, mas simultaneamente conectados pela mágica da Internet, com a equipe no Brasil eu aqui, no meio do Oceano Atlântico, nesse lugar que é África, mas que é também, Portugal. Nossa vida, como sabemos, virou uma imensa chamada de Zoom. E isso me traz aspectos menos óbvios dessa repetição da história. Como, por exemplo, a pena genuína que os madeirenses sentem de mim, de nós. Os poucos nativos que encontro na ilha, nessa vida de distanciamento social, parecem adorar o Brasil — todos têm parentes na nossa terra. Mas todos, todos, me fazem cara de pêsames e querem entender como chegamos onde chegamos. Isso me traz à mente a vergonha que passava em Londres, onde morava durante os anos Collor. Alguns ingleses também mostravam, então, a comiseração e a pena que os madeirenses agora me expressam, enquanto outros me cobravam com raiva: “Como? Como vocês elegeram isso?” Os madeirenses são educados demais para fazerem isso, mas sei que pensam o mesmo.
Os nativos desta ilha me consolam, à distância, com um ar de quem consola um amigo num velório de um parente. Eu sinto vergonha. Muita. Como explicar a um estrangeiro um Jair Bolsonaro? Ou um Fernando Collor? Como explicar os mais de 260 mil mortos de Covid 19, um presidente que prega um tratamento com um medicamento comprovadamente ineficaz e questiona o uso das máscaras? Como explicar a queima de 25% do Pantanal? O que dizer? Eu tenho plena consciência de que essa vergonha que passam os brasileiros que, como eu, estão no exterior não se compara à tragédia que se vive no Brasil no momento, com a escalada descontrolada do número de mortos da pandemia. Mas essa vergonha existe e ela também une estas duas eras, é também um déjà vu.
Déjà vus e vergonhas são comuns na nossa pátria. Parece que a cada 30 anos o país elege uma figura absurda, vinda da periferia do congresso, prometendo acabar com a corrupção e salvar a nação. Foi assim com Jânio Quadros e com os dois presidentes que comparamos aqui. O final é sempre trágico. Nem tanto para os chefes da nação: Jânio voltou como prefeito de São Paulo, Fernando Collor é Senador e o atual presidente não sabemos ainda como vai terminar. Mas para o país, o final é sempre, indubitavelmente, uma tragédia.
Minhas memórias de jovem me mostram ainda outras semelhanças. Me lembro de viver outra pandemia arrasadora, a da AIDS, também pessimamente administrada e causando mortes desnecessárias, em massa, amigos morrendo, luto. Me lembro do eleitorado, parentes e amigos, de forma ingênua e irresponsável, ignorando o passado duvidoso de um político periférico e acreditando que ele seria a salvação do país, o carrasco da corrupção.
Me lembro das grandes manifestações que precederam suas eleições. Lembro de mim mesmo, adolescente, animado, integrado a um milhão de pessoas pedindo as Diretas Já na Cinelândia em 85, para que as tais eleições diretas, ao final, nos trouxessem ELE! Até mesmo fatos banais, como ver uma foto do atual presidente andando de Jet Ski em meio a uma crise sem precedentes, me faz lembrar do outro, também de Jet Ski no Lago Paranoá, às vésperas da sua renúncia. O adolescente e o quase sessentão se encaram e se perguntam: “Não conseguimos mudar nada?
Todavia, por mais que estas semelhanças existam, elas não me trazem a sensação de conforto que um mundo cíclico traria (é assim, mas passa…). A atualidade é muito mais perversa que o primeiro governo da Nova República. E não é só uma impressão minha, porque no mundo digitalizado contemporâneo eu posso participar mais do que acontece, mesmo estando longe, do que podia nos anos 90. Não, tudo é mais sério mesmo. Antes ainda havia limites que ainda eram respeitados. O Presidente Collor não ia à TV pregar o não uso da camisinha na campanha contra a AIDS. Quando ele disse que tinha “aquilo roxo”, houve uma comoção nacional, ao passo que hoje o atual presidente abusa dos termos chulos e isso é visto como normal. Não havia esse uso sistemático da mentira como forma de se minar o próprio senso do real. E, mais crucialmente, havia a possibilidade das pessoas tomarem as ruas, sem medo da aglomeração, e expressar a indignação do povo, como fizeram os caras-pintadas. A história pode até se repetir, mas não se repete igual. O fundo do poço agora é bem mais profundo.
Portanto, discordo do nosso amigo Marx. A história parece se repetir, sim. Porém, no Brasil, da primeira vez ela já vem como farsa e, da segunda, vem como tragicomédia. Uma tragicomédia cada vez menos cômica e cada vez mais trágica. Melhor eu abraçar minhas memórias e meus déjà vus, usá-los na nossa peça como um protesto, buscar consolo com a equipe do espetáculo no Brasil e evitar os olhares de pena e incompreensão dos madeirenses. Eles machucam muito.
Rogério Corrêa é dramaturgo e vive em Londres há 30 anos. Seu próximo trabalho é a tragicomédia “De bar em bar”, com estreia no dia 14 de março, às 20h, no YouTube. O texto é inspirado nas peças “Kennedy’s Children”, de Robert Patrick, que por sua vez inspirou a peça “Os Órfãos de Jânio”, de Millôr Fernandes e fala sobre o passado recente do Brasil através de quatro personagens que revivem, por meio de diálogos fragmentados, o fim do regime militar no Brasil e o começo da Nova República.