No dia 2 de março fiz mais um voo pelo projeto “OlhoVerde”, com apoio do Instituto Trata Brasil, do qual sou embaixador. Faço esse protocolo de monitoramento ambiental “masoquista”, sempre quando disponho de recursos, desde 1997.
Portanto, disponho de um acervo fotográfico ambiental aéreo que me confere uma significativa memória do que vem acontecendo nos ecossistemas costeiros da Região Metropolitana e da cidade do Rio de Janeiro, de significativo respeito e confiabilidade.
Decolando da Baixada de Jacarepaguá, o então “Sertão Carioca”, de Magalhães Correia (1936), o que se constata é que toda a bacia hidrográfica da região está morta. Todos os rios que chegam às cinco lagunas da baixada foram convertidos em valões de lixo, principalmente, esgoto. O saneamento universalizado, um direito constitucional, mais uma vez, ficou apenas no direito, na região que sediou boa parte das provas dos jogos olímpicos de 2016, ao lado de um sistema lagunar moribundo.
Os legados ambientais olímpicos, também eles, ficaram no papel como já havia acontecido anteriormente com os jogos Pan-americanos; afinal, esse lugar não é um país sério.
Diferentemente da festa, simplesmente o tema ambiental para a classe política, assim como para boa parte da sociedade, não é um assunto prioritário no Rio de Janeiro, mesmo quando todo o mundo estava de olho no que acontecia por aqui durante os grandes eventos. Questão de prioridade e vergonha na cara.
No maior passivo social e ambiental, exclusivo da cidade do Rio de Janeiro, percebem-se duas tragédias anunciadas. A primeira, associada com a agonia permanente do sistema lagunar, transformado numa imensa latrina e lata de lixo pelo aporte permanente de sedimentos, resíduos e esgoto em suas águas rasas e contaminadas, onde, apenas na laguna da Tijuca, repousam mais de 6.5 milhões de metros cúbicos de tudo que se possa imaginar, desde 2007.
Em particular, essa laguna é uma bomba-relógio prestes a explodir, visto que, por ela, passam 95% de toda a água que escoa da baixada. Portanto, no dia em que ocorrerem de comum acordo, chuvas torrenciais e maré alta, a principal via de escoamento irá cobrar o preço por décadas de descaso, e as favelas, que só fazem crescer nas últimas quatro décadas, situadas no seu entorno, irão literalmente naufragar.
Só na favela de Rio das Pedras, aproximadamente 70 mil moradores ficarão debaixo d´água. Isso já aconteceu em 1996, 2010 e vai acontecer novamente, com maior intensidade ainda. A segunda tragédia acontece todos os dias com o extermínio da biodiversidade, outrora exuberante; hoje é apenas uma caricatura do que foi num passado recente. Somente as espécies animais mais resistentes suportam o grau de contaminação imposto pelo crescimento urbano sem infraestrutura, e mesmo muitas delas padecem.
O preço de tal extermínio é a multiplicação de pragas, que, sem ter quem as combata, atacam diretamente, por meio de variadas doenças — os provocadores de todo o desequilíbrio ambiental observado. Onde poderia haver o desenvolvimento de inúmeros serviços econômicos ambientalmente sustentáveis, como o ecoturismo, a pesca esportiva, o lazer, o esporte náutico, há apenas lixo, sofás, geladeiras e pneus, além de cianobactérias tóxicas.
Como se diz, “a Natureza não se protege, vinga-se”.
Saindo da Baixada de Jacarepaguá, flagra-se o escoamento de toda a podridão — lançada pelos rios no sistema lagunar — saindo pelo canal da Joatinga e atacando monstruosamente as praias da Barra e Joatinga.
Um mix de esgoto e cianobactérias tinge as águas oceânicas, sem que isso produza nenhuma reação enérgica dos cariocas usuários do principal ativo econômico e ambiental da cidade: suas praias. O carioca simplesmente se acostumou, diante de sua “resiliência patológica”, isto é, a mania de aceitar o inaceitável, de se divertir, de se banhar, de praticar esportes em águas pútridas.
Rumando para a Baía de Guanabara, o quadro é apocalíptico.
No Rio de Janeiro, sempre na vanguarda nacional, lançamos um novo tipo de atração turística. São os “cartões-postais fecais”, onde a apatia de nossas autoridades e a aceitação patológica da sociedade conseguiram unir o que há de mais belo no campo ambiental com o mais pútrido em termos de degradação e impunidade.
A enseada de Botafogo com o Pão de Açúcar ao fundo, é um exemplo disso, com a foz dos rios Banana Podre e Berquó, lançando permanente esgoto nas águas da enseada, há décadas, sem perspectiva de melhora.
Outros dois pontos turísticos fecais são a Marina da Glória e o Porto do Rio. No primeiro, fizeram obras na casa dos 14 milhões de reais para os jogos olímpicos; a tal obra funciona quando lhe dá vontade. Portanto, a marina mais parece uma cloaca. O segundo é o tal Boulevard Olímpico, área belíssima e completamente reurbanizada, mas que, no quesito saneamento, simplesmente não “aconteceu”, mantendo as águas portuárias como outra imensa latrina e depósito de resíduos flutuantes — um típico cartão-postal fecal para os navios com turistas admirarem.
Porta de entrada internacional do Rio, o canal do Fundão é o reflexo da mais completa impunidade quando o assunto é saneamento e ordenação do uso do solo.
Tomada por favelas de ponta a ponta, o canal do Fundão é uma imensa vala de esgoto mal cheirosa que recebe os incautos turistas em busca da “Cidade Maravilhosa“, vendida nos encartes turísticos.
Na península do Caju, constatamos a megalomaníaca Estação de Tratamento da Alegria, uma verdadeira tristeza, visto que, desde sua inauguração, nunca funcionou em plena carga, estando mais de 50% de seus equipamentos, deteriorando-se no tempo, sem função alguma, enquanto toda a bacia hidrográfica local é esgoto puro.
Poderia também comentar sobre a baía de Sepetiba que segue o mesmo caminho de sua irmã mais famosa, com o mesmo enredo, isto é, crescimento urbano desordenado, falta de ordenação do uso do solo e do saneamento universalizado, sem esquecer as línguas negras de Copacabana ou da qualidade comprometida das águas das praias de Ipanema e Leblon, durante os períodos de chuva, mas prefiro ficar por aqui.
Destaco que todo esse quadro ambiental apocalíptico e criminoso não tem sido por falta de dinheiro, mas exclusivamente por falta de vontade política e pressão da sociedade.
Lembra-se que, apenas no Maracanã, por conta da Copa de 2014, foram “torrados” 1.6-2.0 bilhões de reais ou na tal Cidade das Artes, um valor de 1 bilhão de reais.
Portanto, não é falta de dinheiro, mas sim falta de prioridades sociais e ambientais que tem passado ao largo das decisões dos administradores públicos eleitos, referente à falta de gestão ambiental da cidade do Rio de Janeiro, ou melhor, da cidade do “Rio de Esgoto”.
Finalizo, esclarecendo que todo esse quadro de degradação sistêmica não é uma tragédia ou uma situação fortuita, mas, sim, o produto de uma ação consciente de castas, de grupos públicos e privados que têm se beneficiado historicamente da impunidade referente à ação predatória dos recursos naturais da cidade do Rio.
Nada é por acaso que, nesta cidade, continue-se pensando e agindo como uma colônia de exploração, onde o objetivo é predar o recurso natural da forma mais rápida possível.
Essa cultura é que produziu, e continua produzindo, o atual quadro ambiental terminal nos ecossistemas outrora existentes ou ainda residualmente presentes nas baixadas de nossa cidade. No momento, nada me indica que esse comportamento esteja mudando.