“O Brasil não tem povo, apenas público. Povo luta por seus direitos. Público só assiste de camarote.” (Lima Barreto, 1915).
Esses tempos sinuosos que vivemos, em que as contradições e as perplexidades se sobrepõem, me fazem evocar a vida/obra do escritor e jornalista carioca A. H. Lima Barreto, a meu ver, um dos cinco autores mais originais da literatura em língua portuguesa. Certamente, não arriscaria considerar qualquer detalhe biográfico de sua trágica vida e de suas sofrências, até porque deveriam ser de farto conhecimento público.
Como não são, ao que deduzo com envergonhada certeza, tomo o título acima para sintetizar-lhe a vida e obra. De fato, o autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma” gravitou entre a agonia e o êxtase, aos quais ousaria agregar o sentimento de revolta, de inconformismo, de bater firme na hipocrisia, de defender o Brasil dos Bruzundangas, ostentando o hoje em desuso patriotismo, no caso dele, frenético e delirante. Mas sempre heroico e original, além de roçar traços sutis da loucura que o abateria prematuramente.
De fato, como dizia Lima Barreto, povo só é povo quando luta por seus direitos. Quando não o faz, o povo se transfigura em público, a assistir ao desenrolar da trama que conduz o país de camarote, ou da torrinha mais simplória e desprezível. Pode, no máximo, aplaudir ou vaiar.
Agora mesmo, acabo de acompanhar estatísticas nos jornais da TV desta noite (01/02) que dão conta de que o Brasil está entre os últimos colocados no índice de vacinação de seu povo, mais de 200 milhões de almas.
Almas? Sim, o conjunto tétrico de falta de planejamento + gestão + antecipação da tragédia anunciada nos projeta nesse poço sem fundo. A falta de vacinas que virá por aí poderá fazer dobrar as mais de 200 mil almas vitimadas pela pandemia.
Ao menos, são as previsões de infectologistas, agora ampliadas pelas novas e assustadoras mutações e migrações do vírus ainda mais letal, a partir do Amazonas, e que já estaria espalhado pelo País. Razão da concretização de uma possível praga do bizarríssimo ministro das Relações Exteriores ao concluir (com orgulho!), há dois meses, que o Brasil seria um pária em um futuro próximo, tempo esse que desgraçadamente acaba de chegar.
Ainda há pouco, lamentando a lanterninha do Brasil nas taxas de vacinação, também me pilhei indignado com aquilo que havia previsto, o exercício da suprema truculência do furar filas. Que povo é esse, cujas supostas autoridades precisam de fiscalização quase policial para não subtrair direitos dos mais necessitados, previamente alinhados em pacto nacional de prioridades? Que povo é esse que não refuga de armas na mão (afinal, será essa a hora justa dos muitos armados se manifestarem) contra a indecência da compra de 33 milhões de doses de vacina por grupo de empresários, tendo como contrapartida a subtração da metade do lote para aplicar nos próprios colaboradores.
E as mortes no Amazonas? Continuam. Lá, as vacinações pararam por determinação da Justiça, ainda não por falta de vacinas, mas por obrigatória moralidade pública, para frear o abjeto trem da alegria das aplicações indevidas, das carteiradas etc.
Creio que a hoje célebre infectologista Margareth Dalcolmo declarou em debate televisivo que, se houvesse um mínimo de coordenação, gestão e inteligência, o Brasil vacinaria um milhão de pessoas em prazo curtíssimo de dias, tal como foi feito na última vacinação, creio eu, da influenza. Claro que isso remeteria ao êxtase da aplicação em todo o País. Também um certo êxtase se materializou com o discurso corajoso do ministro Luiz Fux que, ao lado do Presidente Bolsonaro, clamou pela fé na ciência contra o obscurantismo e o negacionismo, a favor da vacinação universal.
Mas cadê os 200 milhões de vacinas? Esqueceram-se de negociar, de reservar, de pagar. E aí o item agonia nos atinge como soco na cara, e pode condenar muitos de nós à morte.
Encerro com a previsão de Lima Barreto para seu país dos Bruzundangas: “A Constituição de lá era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente. Estabelecia que ele unicamente deveria saber ler e escrever, que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade…”.
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.