Certa vez, uma amiga me contou que, numa conversa informal entre amigos, ao salientar sobre a importância em manter vivas as 160 línguas faladas no Brasil, ela fez a ressalva: “Somos um povo muito interessado no que vem de além dos mares, mas, quando se trata dos assuntos que dizem respeito à terra sob nossos pés, a coisa muda de figura”. Ela falou também que desejava aprender tupi para poder conversar com os índios. Nesse instante, outra colega a interpela: “Não diga índio, nunca mais. O certo é indígena. O termo índio foi usado pelo colonizador erroneamente, e os próprios indígenas não gostam de ser chamados de ‘índio’. É quase um xingamento! Afinal, não estamos na Índia: enganou-se Cabral”.
De fato, ensinaram-me no primário que Cabral tentava chegar à Índia, mas, por equívoco, errou o caminho e assim descobriu o Brasil. Foi assim que os portugueses nomearam de índio aquele povo que lá estava. Em contrapartida, os brancos portugueses foram chamados pelos nativos de ‘peró’, cuja origem e significado são bem variados e controversos. Foi assim: um nomeou de lá e o outro, de cá.
A polêmica sobre a intitulação correta surge através de um movimento chamado descolonização. Sinceramente, ainda não entendi bem qual a efetividade do extermínio intencional de palavras, seguido da imposição de outra palavra para expressar o que a exterminada tentava apontar. O que isso pode contribuir para a diminuição segregatícia, inclusão social ou obtenção de respeito de uma classe? Será uma tentativa em eliminar as diferenças humanas? Entendo que, mesmo se não mais usarmos a palavra índio, passando a nos referir à espécie somente como indígenas, devido à forma intencional, imposta, obrigatória e proibitiva, esta já vem carregada com um novo significado, aquele que relembra a impossibilidade de falar a palavra índio e o porquê. Ou seja, nesse caso, índio sempre estará contido em indígena.
Vejo o movimento de forma abrangente, não se restringindo apenas aos indígenas ou aos africanos escravizados, inegavelmente povos oprimidos desde a colonização, mas penso que o movimento vem se estendendo a muitos outros grupos minoritários.
Decerto que há racismo e preconceito no Brasil e no mundo, mas não entendo esse fenômeno apenas como uma questão sociológica, mas sim estrutural do ser humano. Sem dúvida, podemos ser muito melhores nesse aspecto, porém não creio que o caminho seja pela eliminação de palavras, mas sim pela linguagem transmitida.
Quero dizer que para meus filhos a opção sexual de fulano ou sicrano não é um assunto que cause um interesse maior do que uma breve levantada de sobrancelha. Isso se deu não porque seus ascendentes retiraram do vocabulário algumas palavras que pudessem ser pejorativas, mas por elas terem sido usadas dentro de um contexto que certamente não expressavam preconceito estrutural. Acredito que meus netos irão igualmente ignorar algumas características humanas que seus pais já não valorizavam com um ponto de exclamação. E assim caminha a humanidade através da linguagem.
Acredito também que devamos estar atentos às palavras, aos abusos e à forma tosca da comunicação. Não precisamos aceitar a escusa de um insulto ou grosseria como sendo apenas uma forma genuína de expressão. Portanto, o que coloco em jogo é a forma e não as palavras em si – elas existem, gostem ou não. Elas podem e devem ser usadas, pois todas têm seu momento e espaço apropriado. Negro, índio, pardo ou branco, homem, mulher, trans, cis, hétero, gay. Pense se cada um assumir sua identidade tomando para si aquele significante com o qual se identifique e fazendo dessa nomeação algo produtivo para si. Ao fazer ser bem-vinda toda a significação que a palavra lhe cabe, certamente irá converter o significado à sociedade.
Assim eu me pergunto qual a função em apagar parte da história ou apagar as marcas da identidade? Extinguir o gênero de uma palavra não acabará com a diferença sexual; exterminar a palavra escravidão não vai modificar a história do Brasil, do Egito, da Grécia ou do Império romano. O povo russo, legitimamente, decidiu não mais ter um monumento a Lênin em suas praças, porém destruí-lo não fez com que Lênin não tenha existido. Pouco antes da Segunda Guerra, os nazistas queimaram os livros de Freud e, mesmo assim não calaram a psicanálise.,
O mundo está repleto de museus e monumentos que relembram o Holocausto, diga-se de passagem, com todo apoio da comunidade judaica, pois a intenção é manter viva a tragédia, porém de forma ressignificada, lembrando os limites da perversão, do poder discurssivo extremista, da pretensão em acabar com a diferença racial. A propósito, não conheço nenhum judeu que se incomode de ser chamado de judeu.
Podemos continuar escrevendo a história com as mesmas palavras. Umas saem do vocabulário, outras entram, outras renascem ao sabor da cultura. É um movimento natural, e não uma imposição ideológica.
Lacan nos mostra que a linguagem se faz por equívocos dos quais não podemos escapar. Isso quer dizer que não se estabelece um discurso sem furos, pois não há totalidade na linguagem; a palavra não diz tudo, portanto é inócuo tentar barrar seu fluxo metonímico. As tentativas de estancar esse processo são empobrecedoras, pois, tal como aconteceu com Cabral, o equívoco provoca o novo. Minha sugestão está em aceitar as diferenças, tornando mal estar menos incomodativo.
Neste mundo polarizado, fico com os Paralamas do Sucesso: se for para assaltar a gramática, que seja para colocar poesia na bagunça do dia a dia.
Luciana Torres, a Tati, é psicanalista e coordenadora do setor de Saúde Mental da Ápice Saúde, no Jardim Botânico. É mestre em Psicanálise pela UERJ, pós-graduada em Psicologia Clínica pela PUC-RJ e integrante dos Fóruns do Campo Lacaniano (IFFCL).