“10… nota 10”. Há 29 anos, toda Quarta-Feira de Cinzas, eu me sento de frente para a Marquês de Sapucaí e apresento a apuração dos desfiles das escolas de samba do Rio. Desta vez, está sendo diferente — a covid mudou o curso de muita coisa. É difícil porque não são só os quase 30 anos de apuração; são também meus mais de 50 anos de carnaval e, destes, 37 anos trabalhando na Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Comecei na extinta TV Tupi, cobrindo os desfiles da Avenida Rio Branco e, depois, na Avenida Presidente Vargas. Sem contar que, há muitos anos, faço ainda o concurso do Rei Momo. Então, dá para imaginar? As coisas vão ficando enraizadas quando você faz por muito tempo e com tanta paixão.
Pela primeira vez na vida, não trabalhei em um carnaval e não estou gostando nada. Para me ocupar, já que minha mulher tem um salão de beleza na Barra, estávamos precisando fazer uma mudança e uma reforma. Aproveitei esses dias para isso: ocupar a minha cabeça, para não pensar na tristeza de ver o Rio sem carnaval, de ver a mim mesmo, sem o carnaval. As pessoas me encontram na rua e, chorosas, lamentam esses tempos que vivemos. E pedem para eu repetir em voz alta: “10…nota 10!”. É difícil. Nunca imaginei que fosse viver isso na minha vida.
Em quase três décadas de apuração, posso dizer que só tive alegrias e que realizo a função com muita responsabilidade, comprometimento e carinho. O “10…nota 10” virou minha marca registrada. Eu não dou a nota simplesmente, eu a interpreto. Tanto que o Eduardo Paes, muito gentil, foi em um dos meus eventos de entrega de prêmios carnavalescos, subiu ao palco e me leu um decreto que diz que a expressão “10… nota 10!” virou patrimônio imaterial da cidade do Rio de Janeiro. Isso me honra muito, porque fica nos anais da história da cidade. Outro bordão meu, o “Só se for agora”, também é muito usado; virou até nome de bloco de carnaval.
Sei que esses três segundos de pausa que eu dou, quando a nota não é um 10, já causou princípio de infarto em muito diretor e componente de escola. Quando, por exemplo, digo “nota 9 (pausa), nota 9.5, 9.7”, que seja, essa pausa é proposital: é para valorizar e dar emoção. Já reclamaram comigo, principalmente os dirigentes das escolas, mas é o meu jeito. Eu me recordo que, certa vez, quando dava as notas, a Porto da Pedra estava desfilando no grupo especial; as notas, nessa época, não eram entre 9 a 10 como são hoje — o sujeito podia dar entre 7 e 10, a cada quesito. E os décimos contavam. A escola precisava tirar 7.5 em uma determinado quesito, alegoria, se não me falha a memória, para se manter no grupo especial. Uma grande expectativa dos componentes e de toda a comunidade de São Gonçalo… Mas, quando fui ler a nota, estava escrito lá 7.4. Eu não acreditei que a escola ia descer para o grupo de acesso, por causa de um décimo. Até dei uma leve engasgada na hora. Era como se fosse zero, sabe? Foi um silêncio geral, ninguém acreditou numa coisa daquelas.
Aquilo foi um banho de água fria nas pretensões de toda uma escola, que tinha feito um ótimo desfile, derrubada por um décimo. Não sei se foi erro de interpretação do jurado ou alguma outra coisa. Só sei que, no samba, não é no futebol que tem o Var (do inglês “video assistant referee”), aquele árbitro de vídeo que permite anular um pênalti marcado. No carnaval, a nota que o jurado deu é aquela, e ponto final. Não tem discussão. E olha que, bem antes de começarem os desfiles, os jurados recebem um manual dos julgadores para ficar por dentro dos critérios avaliadores; enfim, é tudo muito organizado.
Esse foi um momento nevrálgico, que recordo na apuração. Mas, no geral, nunca tive uma falha, li nota errada ou coisa do tipo. E, modéstia à parte, minha interpretação faz a diferença, senão, colocavam um locutor lá, um leitor de nota, e pronto. Faço com muito cuidado, e o público e toda a comunidade do samba, independentemente da escola, reconhecem isso.
Além da apuração, também sou o coordenador dos desfiles, tanto do grupo especial quanto do de acesso. Sou eu quem abre e fecha os portões da Marquês de Sapucaí. Já vi muita coisa, tive que tomar decisões importantes em cima da hora, para ajudar as escolas o máximo possível: é um carro que quebra e impede a passagem das demais agremiações; um componente no alto do carro alegórico que passa mal e tem que sair; princípio de incêndio aqui e ali, enfim… Isso sempre acontece. E estamos lá para resolver e ajudar o maior espetáculo da terra acontecer. O que vi de mais trágico, sem dúvida, foi o acidente com a escola de samba Paraíso do Tuiuti, em 2017, uma fatalidade sem precedentes e com vítimas.
Agora, prestes a fazer 77 anos, no próximo dia 18, o carnaval me dá mais uma alegria. Tentei esconder até agora, mas recebi um convite de alguns membros da Liesa para assumir a diretoria da Liga Independente das Escolas de Samba a partir de março. Vai acontecer uma assembleia-geral dia 16, e soube, orgulhosamente, que meu nome foi aceito praticamente por unanimidade. Talvez, pela minha idade, esta seja minha última contribuição para o carnaval. Ainda tenho meu programa, o “Samba de Primeira”, que quero continuar fazendo nem que seja mensalmente. Eu quero continuar, ainda não quero pendurar meu microfone, não; mas o futuro a Deus pertence.
O que posso garantir é que eu quero muito estar lá, apresentando a apuração das notas no carnaval do ano que vem, aquele que, sem sombra de dúvidas, será o carnaval mais concorrido do século, porque ninguém esperava ficar um ano sem a festa. A procura vai ser imensa, imagina a expectativa! Vai ser de uma ansiedade tão grande, todo mundo querendo recuperar o ano perdido. E isso tudo vai cooperar para termos um espetáculo de um nível muito superior em termos de qualidade, beleza e escolha dos enredos. O carnaval de 2022 vai ser inesquecível, daqueles “10… nota dez!”. É só esperar um pouquinho.
Jorge Perlingeiro é jornalista, apresentador de TV (por anos comandou o programa “Samba de Primeira”, na rede CNT) e também radialista. Há 29 anos é o locutor oficial da apuração dos desfiles das escolas de samba do Rio e, a partir de março, será o novo presidente da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa).
Por Acyr Méra Júnior