Seu carro dá pane dentro do Rebouças, você precisa empurrá-lo até a saída e esperar o socorro. Perde o compromisso, volta de táxi pra casa, todo suado, faz um desabafo no FB e aí uma pessoa que você nunca viu com mais sobrepeso comenta “Tem carro e reclama. Quero ver é pegar o 393 em Bangu, sem ar condicionado, e viajar em pé até a Central”.
Sim, isso existe. É o someliê de desgraça. A dele é sempre maior que a sua. Isso também atende (ou atendia, até pouco tempo) pelo nome de “white people problems”.
Quebrou o salto e teve que ir embora da festa com os pés no chão? Saiba que há pessoas que nunca tiveram sapato. Seu celular novinho caiu na piscina? Experimente lamentar isso para ver o que te acontece.
Não há drama no mundo que não possa ser desqualificado (“Câncer de pele? Bah, o de próstata é que é terrível”, “Covid? Se fosse ebola é que você ia ver o que é ficar mal”). Normalmente isso é dito por quem prega empatia e mais amor, por favor.
Todos esses prolegômenos são para contar como sofre um vegetariano. Sim, claro que os veganos sofrem muito mais (sempre tem alguém que sofre mais que a gente, lembra?).
Os vegetarianos estão para os veganos assim como os agnósticos estão para os ateus. Ficamos no meio do fogo cruzado entre quem traça, sem culpa nenhuma, uma picanha sangrenta e quem faz o sinal da cruz diante de um pão de queijo, porque leva leite, ovo e, claro, queijo. E apanhamos dos dois lados.
— Boa tarde. Tem algum salgado sem carne?
— Tem coxinha de frango, senhor.
Vegano não passa por isso, porque vegano nem entra em lanchonete comum.
— Não, sem carne, sem frango.
— Tem folhado com peito de peru…
O vegano, se tivesse entrado por engano — ou por desespero — na lanchonete já teria picado a mula. O vegetariano insiste.
— Sem nada de carne. Nem frango, nem peru…
— Tem rissole de presunto.
O vegetariano olha para a moça atrás do balcão, pedindo aos céus que a iluminem. A moça atrás do balcão olha para o vegetariano, perguntando por que diabos aquele sujeito não fala logo o que quer.
— Não, moça. Algum salgado sem proteína animal. Sem carne, frango, peru, presunto.
— Então só cachorro quente.
Eu não reclamo quando isso me acontece — não para não parecer chato, mas para evitar que me apareça um desconhecido lembrando que eu fico escolhendo comida enquanto milhões de crianças morrem de fome em Bangladesh.
Não comer carne é uma decisão ética, mais que gastronômica. E tem seu custo: a gente fica com carência de ferro, B-12, cálcio, zinco. Precisa repor isso de alguma forma. Para isso, vai ao nutrólogo, ao endocrinologista.
— Doutor, boa tarde. Eu sou vegetariano e…
— O que leva uma pessoa da sua idade a cometer a estupidez de ser vegetariano?
Sim, aconteceu comigo. Tanto o diálogo da lanchonete quanto o do consultório.
Eu devia protocolar uma queixa no CRM, mas prefiro evitar que me apareça um desconhecido apontando que eu reclamo de endocrinologista enquanto milhões de pessoas morrem na fila do SUS esperando por um auxiliar de enfermagem.
“Veggie problems”, dirá alguém, com desdém. E seguirá saboreando seu fuagrá e degustando as desventuras alheias.