Ser escritor requer alguma imaginação. Nada que se compare à necessária a um locutor de supermercado.
Eu tiro leite de pedra uma vez por semana. Ele ordenha uma pedreira por dia.
O mais próximo que conheço dessa tão desmerecida profissão é o humorista que faz estendape de improviso. Com a diferença que este tem camarim, holofote e cobra ingresso.
Imagine oito horas por dia circulando entre gôndolas de xampus, desinfetantes, chicórias, sucrilhos, leite longa vida e sardinha em lata, tendo que dizer, em alto e bom som, algo excitante sobre esses produtos.
Eventualmente, há uma promoção. Então, louva-se a peça de alcatra bovina que está por apenas R$ 35,98, freguesa! Peça de alcatra bovina, um quilo, só hoje, na seção de carnes, oferta por tempo limitado, só enquanto durarem os estoques, trinta e cinco e noventa e oito, aproveite, freguesa, peça de alcatra bo-vi-na.
A promoção rende alguns minutos de trégua — com o truque de repetir o preço e separar bem as sílabas de algum adjetivo, para ganhar preciosos segundos. Mas o resto do tempo é sem script nenhum (ia escrever “escrípite”, mas ficou muito feio; não dá pra aportuguesar tudo).
Nem sempre o preço, por si só, sustenta o discurso. É preciso realçar alguma característica do produto. Algo que seduza a freguesa (a feira, o supermercado e o salão de depilação são os únicos lugares onde o feminino prevalece sobre o masculino como forma não marcada: “freguesa” inclui a clientela inteira, independentemente do sexo).
A melancia hoje estava a R$ 1,99. Preço mais que justo para essa poça d’água aromatizada, embalada numa casca grosa, e apinhada de sementes. Como desencalhar a mercadoria? “Melancia convencional, freguesa, melancia convencional a R$ 1,99 o quilo, só R$ 1,99 o quilo da melancia con-ven-cio-nal”.
Existirá melancia alternativa? Manga tem sobrenome: Haden, Rosa, Palmer, Espada, Ubá. Banana carrega junto outro substantivo (ouro, prata, maçã) ou locução adjetiva (d’água, da terra). Laranja pode ser pera, bahia, seleta. Mas que diabos seria uma melancia não-convencional? Quadrada, sem semente, vermelha por fora e verde por dentro? Talvez fosse “melancia nacional” e o locutor se entusiasmou. Mas quem importaria melancias?
Não interessa: ele já estava apregoando o azeite. Azeite extravirgem, freguesa, apenas R$ 14,95 a unidade. R$ 14,95 o azeite extravirgem envasado. En-va-sa-do, freguesa. Azeite en-va-sa-do, por apenas R$ 14,95. Azeite en-va-sa-do, da melhor qualidade, por apenas R$ 14,95.
Olho em volta, e o locutor está bem ao meu lado, segurando um microfone sem fio — daqueles com uma bolota na ponta, igual ao que o Sílvio Santos usava nos tempos do carnê do Baú — e de olhos pregados do rótulo. Encantado — não com a acidez, os mililitros, a procedência — mas com o detalhe de ser um produto en-va-sa-do.
Envasado onde? No local de produção ou no Brasil? Como se venderia um azeite não-envasado? Diretamente do barril?
Não vem ao caso. Ele tem que atrair a freguesa para a melancia, o azeite, o presunto fatiado (fa-ti-a-do!), o leite integral (re-cons-ti-tu-í-do, freguesa! Leite in-te-gral e re-cons-ti-tu-í-do, por apenas R$ 4,69! Um produto que não pode faltar na sua alimentação, porque é re-cons-ti-tu-í-do. Apenas R$ 4,69 a caixa de um litro).
Ignorei seus apelos quanto à peça de alcatra bo-vi-na, ao presunto fa-ti-a-do, ao leite re-cons-ti-tu-í-do. Mas a tal melancia con-ven-cio-nal fazia jus ao nome. Era igualzinha a todas as outras que comi ao longo da vida.
O azeite en-va-sa-do ficou para a próxima. Quando for um mo-no-va-ri-e-tal, freguesa, com aroma fru-ta-do ou a-man-tei-ga-do. Azeite fru-ta-do e a-man-tei-ga-do por apenas R$ 14,95, eu compro. O envase não me seduziu, não.