Contrariando as recomendações dos órgãos competentes, o que se viu, na reta final do ano, foi a proliferação das aglomerações. Jovens reunidos em festas clandestinas, divulgadas através das redes sociais, a Covid-19 no ar, e as pessoas parecem ignorar o risco. Mas o que existe por trás dessa desobediência? O que leva a essa aparente pulsão de morte que estamos acompanhando? Não estamos aqui para fazer um tribunal da Internet, julgar pessoas, nada disso. Queremos analisar, tentar entender os motivos e provocar reflexão.
Partindo do princípio de que a adolescência, segundo a OMS, vai até os 19 anos, percebe-se, no olhar de qualquer leigo, que o padrão adolescente está presente em pessoas com bem mais de 20 anos. Podemos dizer então que a adolescência tardia é, hoje, algo prevalente. Philippe Ariès dizia, em “História Social da Criança e da Família”, que a criança é um conceito que surge no contemporâneo. A adolescência é ainda mais tardia, um período intermediário, surgindo no início do século XX e progressivamente evoluindo para um modo de ser predominante, determinado por um contexto histórico com múltiplos determinantes.
Nesse percurso, nos anos 60 e 70, já podemos pensar na mulher de classe média assumindo funções fora de casa, mais proativa e executiva do que “recatada e do lar”. Ela abdica das funções de cuidar da casa e ser a responsável pela educação dos filhos. Com isso, observamos uma terceirização dos cuidados da prole, coisa que nenhum outro animal, além do ser humano, faz. O cuidado da criança é entregue às babás, aos avós, à televisão e, posteriormente, à Internet. Soma-se a isso o fenômeno, já em meados dos anos 70, do surgimento da figura do “pai amiguinho”.
Na tentativa de uma abordagem não autoritária da educação dos filhos, todo um roteiro consagrado baseado em limites e responsabilidades cai por terra, em nome de uma “democracia familiar“ e da “felicidade” como objetivo último da criação dos filhos. Desregula-se assim a observância de parâmetros mínimos de respeito aos direitos dos outros, já que o eu vai ficando cada vez mais proeminente. O número cada vez maior de famílias de recasamentos também dificultou a definição dos responsáveis pela imposição de regras e limites.
A Covid-19, é importante frisar, aparece no leito de uma outra epidemia já em curso, a que Richard Sennet chamou de “Epidemia de Narcisismo”: acentua-se o descaso pelas questões do público, em detrimento da radicalização das demandas do privado. Passamos a customizar o entendimento do mundo à nossa imagem e aos nossos desejos. A pandemia narcísica já tinha contaminado os pais dos nossos adolescentes e adultos jovens, que são os maiores frequentadores e promotores das aglomerações que tanto nos assustam e preocupam. Resumindo: parte do mundo opta por encarar os graves desafios que estamos enfrentando com o negacionismo onipotente e inconsequente dos adolescentes. Essas festas clandestinas são um claro retrato disso.
Lembro-me de uma colocação do historiador Leandro Karnal, ao dizer que, para o adolescente, o melhor lugar é o “não aqui” e o melhor tempo, o “não agora“. É importante frisar que a adolescência é o período mais difícil da vida — você não conta com a proteção de quando criança e ainda não tem acesso aos recursos do adulto. Então, para resolver isso, o adolescente busca agrupar-se — olha as festas aí de novo.
O fato é que os problemas e dilemas não são resolvíveis em grupo; eles aparecem como uma avalanche numa vivência muito interiorizada e extremamente solitária. Então, o pensamento é: eu tenho que estar em grupo para me sentir aceito, pertencente e acolhido. Se esse grupo transgredir então, estou transgredindo com ele; eles vão me proteger, e vou ser alguém. Essas festas clandestinas são grandes e perigosos exercícios de transgressão em busca da sensação de pertencimento.
Um estudo muito interessante e abrangente realizado pela USP, chamado “Jovens na Pandemia”, em que as famílias respondiam que tipo de problema surgia e se desenvolvia durante o isolamento social, mostrou uma situação real do momento, de morte e de ameaça da segurança alimentar. As pessoas estão sem dinheiro, sem emprego e não sabem se vão continuar a ter o que comer, ou se vão ser atacadas por aquelas que não têm o que comer. Isso assusta.
Soma-se a isso o fato de que a convivência forçada, causada pelo isolamento, gerou conflitos, desentendimentos e, com frequência, aumento no consumo de álcool. A incidência de violência doméstica e abuso sexual aumentou muito. Diante do horror de morrer ou matar alguém que eu amo, eu escolho viver a fantasia de ser inatingível, de ser mais forte que o vírus.
O pensamento do jovem é este: se o vírus me pegar, tanto faz; se eu for a uma festa e aglomerar, nada vai me acontecer. Prestar atenção ao outro, preocupar-se com o outro e colocar o outro dentro das minhas considerações não era necessariamente um esporte muito praticado já antes da pandemia. Com a Covid, então, isso só se agravou. Estamos falando de uma total falta de empatia.
A pandemia atingiu em cheio o narcisismo, a onipotência, a certeza de que podemos tudo, que controlamos tudo. Em algum momento, todos nos sentimos frágeis e vulneráveis. Os mais adultos buscam, nos fatos e na ciência, a saída para isso. Os adolescentes, de todas as idades, preferem fechar os olhos para as evidências e celebrar como se não houvesse amanhã. Dessa forma, fazem tudo para que realmente não haja…
Ricardo Krause é psiquiatra especialista em infância e adolescência pela Associação Brasileira de Psiquiatria, membro da Associação Americana de Psiquiatria e atual presidente da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi) nacional e do Rio.
Por Acyr Méra Júnior