Certa vez, vi um senhor dando uma maçã para uma garotinha. Como a criança não disse nada, sua mãe olhou para ela com cara feia e falou: “O que a gente diz quando recebe um presente?”. A criança olhou para o senhor, estendeu a maçã em sua mão e disse: “Descasca!”. É difícil saber se nascemos assim, ou se só nos tornamos ingratos com o passar do tempo. Mas a verdade é que não é preciso fazer muito esforço para encontrar, todo dia, pelo menos, um ingrato. Se você estiver tendo dificuldade para encontrar um, dê uma olhadinha no espelho. É o que eu faço quando preciso lembrar-me de como eu realmente sou.
Lembrar-me de minha própria ingratidão é importante porque eu sei que ninguém gosta de pessoas ingratas. É fácil reconhecer uma pessoa ingrata: geralmente, elas reclamam de tudo. Buzinam o tempo todo quando o trânsito está parado (a buzina foi inventada para alertar os outros de perigos, não para fazer o trânsito fluir), apertam o botão do elevador insistentemente (ele não virá mais depressa se fizermos isso), ou simplesmente usam a boca para reclamar.
O que se esconde por trás dessa atitude é um ego inflado, que pensa possuir mais direitos do que realmente possui, e que, por isso, é incapaz de agradecer pelo que recebe da vida.
“Dom Quixote”, de Cervantes, dizia que a ingratidão é filha da soberba, e é isso mesmo: queremos não depender de ninguém, não dever nada a ninguém, mas a verdade é que somos seres dependentes, e essa dependência, que supera nossa fragilidade diante do universo, é o que há de mais belo em nós – é o que gera a solidariedade e, também, a gratidão.
Gratidão vem da palavra latina “gratia”, algo que recebemos sem merecer. Mesmo na pior fase da nossa vida – e muitos de nós estamos vivendo-a agora -, sempre há algo para agradecer se aprendermos a prestar atenção na vida e em seus dons, e não apenas em nós mesmos.
Gosto de escrever um diário de gratidão, no entanto, às vezes, é difícil cumprir a tarefa. Aprendi que, nesses dias, eu não devo escrever em meu diário “não tenho nada a agradecer hoje”, mas “não consegui me lembrar de nada pelo que agradecer hoje”. O problema não é com o mundo, que o tempo todo me oferece motivos para gratidão, mas comigo, que estou tão fechado em meu ego que não consigo reconhecer isso. Também não gosto de escrever algo como “Sou grato porque vi uma praça bonita hoje”. A praça sempre esteve lá, sempre foi bonita. O problema, de novo, é comigo, e por isso prefiro escrever: “Sou grato porque consegui apreciar a beleza de uma praça hoje.”
É claro que coisas realmente ruins acontecem a todo mundo, inclusive às pessoas gratas, porém reclamar não ajuda muito a melhorá-las. Não preste atenção na dor, pensava o filósofo grego Epicuro, e ela não doerá (é bom que você saiba que Epicuro sofria de cálculos renais crônicos, e quando ele falava de dor, era desse tipo de dor que ele falava). Deixar de reclamar, tornar-se grato é possível se aprendermos a prestar atenção no que realmente importa, no que vale a pena.
Marcelo Galuppo é doutor em Filosofia do Direito pela UFMG, professor da PUC Minas, presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Filosofia Social (Abrafi). Junto a Davi Lago (mestre em Teoria do Direito), ele acaba de lançar o livro “Um Dia Sem Reclamar”(Editora Citadel).