Uma das grandes injustiças deste mundo (e de outros mundos, se o conceito de justiça for universal) é não podermos ler nosso obituário.
Alguém dirá que fomos grandes ou medíocres, que deixamos um legado ou que seremos merecidamente relegados ao esquecimento — e não poderemos agradecer, desmentir, corrigir nem revidar.
Consta que o Prêmio Nobel nasceu de um obituário. Um irmão menos famoso de Albert Nobel teria morrido e um jornalista apressado (jornalistas apressados, que não checam as fontes, existem desde sempre) mandou ver no obituário do Nobel errado. Disse, com todas as letras, que o químico, inventor da dinamite, tinha sido um “mercador da morte”.
Morto de raiva, porque se considerava um pacifista, Nobel decidiu doar boa parte da sua fortuna para premiar quem se destacasse nas ciências, na literatura e na defesa da paz. Com isso, garantiu um obituário definitivo bem mais lisonjeiro.
O obituário não é, como se costuma pensar, um texto sobre um morto. É sobre um vivo. Todo mundo que realmente conta neste mundo já tem seu obituário bem engatilhado antes de ir para o outro mundo.
Se você for relevante, deve haver um arquivo de word com seu nome em algum jornal, com uma biografia sucinta, lembrando seus maiores feitos — livros publicados, filmes estrelados, divórcios, escândalos. Tudo que o estagiário (tenho certeza que é um estagiário) tem que fazer é botar a data e o local do passamento e o que diz o atestado de óbito (ou que suspeitas rolam nos saites de fofocas).
Esse texto é atualizado a cada tanto — um novo casamento, um novo divórcio, uma passagem pela polícia, um impítimã — de modo que quando a indesejada der o bote, baste abrir o arquivo, editar e mandar para a diagramação.
Se não dá para interferir nesse item, podemos, pelo menos, deixar pronto o epitáfio — que é um fichamento do obituário. O suprassumo da concisão. A vida resumida numa frase.
Minha única frustração de ser cremado é não poder ter uma lápide com um belo epitáfio. Claro que as cinzas podem ser enterradas, mas convenhamos que é uma redundância — e estragaria a piada, porque o epitáfio que eu gostaria de ter é “Here lies an atheist. All dressed up and no place to go”.
A frase não é minha (vê lá se sou metido a ponto de querer ser epitafiado em inglês!), mas é muito boa e eu me apropriaria dela, sem pudor nenhum (ainda mais depois de morto).
Não tenho o talento de um Fernando Sabino, que determinou que lhe escrevessem no túmulo “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”. Ou a elegância do Tom Jobim, em cuja última morada, lá no São João Batista, se lê “Longa é a arte, tão breve a vida”. Ou o timing de Mel Blancs, dublador do coelho Pernalonga: “That’s all, folks!”.
Outro dia, estudando Latim (sim, dei pra isso depois de velho), me deparei com o epitáfio de Cneu Névio, famoso poeta épico e dramaturgo romano de quem eu nunca tinha ouvido falar:
Inmortalis mortalis si foret faz flore,
Flerent divae Camenae Naevium poetam.
Itaque postquam est Orcho traditus thesaufo,
Obliti sunt Romae loquier língua latina.
Traduzido livremente, “Se fosse permitido aos imortais chorar os mortais, as musas divinas chorariam o poeta Névio. Depois de ser ele enviado ao cofre de Orco (=depois de morrer), esqueceriam, em Roma, como falar a língua latina”.
Modéstia, definitivamente, não era seu forte.
Eu tinha escrito meu epitáfio, há muitos anos: “Aqui jaz, inédito, inacabado”. Mas é nisso que dá a gente botar o carro adiante dos bois: já publiquei um livro, há outro a caminho, e o epitáfio caducou.
Não seja por isso. O novo será “Aqui jaz, inacabado”.
E acabou.
(na imagem, a frase na lápide de Tom Jobim, no São João Batista, em Botafogo).