Isso não é uma vulva. Isso não é uma vagina. Isso não é uma ferida. Isso não é nenhuma parte do corpo humano. Para entender “Diva”, híbrido entre escultura e trabalho de “land art” da artista pernambucana Juliana Notari, é preciso lembrar a provocação do surrealista René Magritte, que, em 1929, pintou “A traição das imagens”.
A tela, com a imagem de um cachimbo, vinha com a legenda-lembrete: “Ceci c’est ne pas une pipe” (“Isto não é um cachimbo”). “Diva” também não é corpo. Como obra de ficção, o trabalho de Juliana pode representar uma vulva, jamais vir a ser uma. E a maior maravilha da arte é exatamente esta — a de nos proporcionar experiências que jamais seriam possíveis na “vida real”, como a de vislumbrar uma vagina de mais de 30 metros de extensão fundindo-se à terra fértil da Zona da Mata pernambucana num duplo feminino.
Por que a representação imaginada por Juliana incomoda tanto? O trabalho, fruto de uma pesquisa longeva e profunda da artista, uma das mais pulsantes criadoras de sua geração, foi atacado tanto por uma maioria conservadora quanto por supostos progressistas. Ambos os grupos se unem no mesmo problema histórico: a dificuldade de entender o corpo feminino como fonte de vida, prazer e criação; a impossibilidade de enxergar o Brasil como um híbrido de muitas nações — o “Matriarcado de Pindorama”, sintetizado por Oswald de Andrade no “Manifesto antropofágico”, em 1928 —, todas elas estupradas pelo macho europeu.
Antes de o homem branco chegar por aqui, o corpo não era um problema, e as matriarcas dos povos originários do Brasil andavam nuas. Junto com os homens, cuidavam de todas as crianças de sua comunidade, sem distinção. Não havia bastardos, não havia sobrenome, não havia propriedade privada. Também não havia culpa e vergonha.
O enraizamento de uma visão masculina e patriarcal é hoje tão forte, que, além de muitos homens, muitas mulheres têm atacado o trabalho de Juliana, travestindo sua culpa — a dificuldade imensa de se enxergar simbolicamente sob os holofotes — com argumentos pueris (“Isso é feio”) ou hipócritas (“Isso é antiecológico” ou “Este dinheiro deveria ser gasto na pandemia”). Tais mulheres não percebem que a rejeição a uma representação do corpo feminino, independentemente da avaliação estética ou conceitual que se possa ter da obra, é uma rejeição do próprio corpo. Não conseguir sequer olhar para uma vagina representada através de uma imagem é um sintoma sério do quanto algumas de nós foram completamente sequestradas pelo machismo.
O corpo livre da mulher sempre foi a grande ameaça aos totalitarismos, e não por acaso, grupos ultraconservadores ao redor do mundo — dos talibãs do Afeganistão aos neopentecostais brasileiros — têm no controle de nossos corpos uma das chaves para seu empreendimento de poder. Além de subjugar e sufocar os corpos reais, os segmentos totalitários têm também um impulso iconoclasta.
Não basta reprimir a sexualidade, a inteligência e o desejo das mulheres; é preciso também aniquilar toda e qualquer imagem que lembre de seu poder de criação, fertilidade e acolhimento. E isso vale tanto para a imagem de vulva criada por Juliana quanto para a “A origem do mundo” (1866), de Gustave Courbet, tantas vezes denunciada no Facebook como algo “imoral”. Vale ainda para mães que mostrem seus mamilos amamentando ou para o desrespeito a imagens que se refiram ao feminino no campo da fé.
Não me parece acaso que, anos atrás, um bispo tenha chutado justamente a imagem de Nossa Senhora Aparecida — mulher, preta e ligada ao sincretismo com religiões de matriz africana. A figura de Maria, no Brasil, confunde-se no imaginário popular com o corpo livre de orixás como Oxum e Iemanjá.
A fúria anti-imagem está tão disseminada nestes tempos sombrios que um jornal como o britânico “The Daily Mail”, conhecido pelo conservadorismo, publicou a obra de Juliana coberta por pixels. No país onde o jornal circula, tabloides sensacionalistas expõem o corpo feminino objetificado em sessões como a “garota da página 3”. Nesse caso, o corpo real, não obras de arte. O problema não é então mostrar o corpo ou representar o corpo, e sim a liberdade que isso pode proporcionar.
Daniela Name é crítica de arte, doutora em Comunicação e Cultura e mestre em História e Crítica da Arte, ambos os títulos pela UFRJ. É curadora-geral da Revista Caju e da Caju Conteúdo e Projetos.
Foto: Mario Grisolli