Acordo cedo, como de hábito. O barbear é costume recente, uma vez que não é possível cultivar a barba já que atrapalha a aderência da famigerada máscara N95 na face. Ossos do ofício.
Não tomo mais meu anti-hipertensivo pela manhã. É uma associação que inclui diurético, e ter que interromper a rotina matinal para fazer xixi, com toda a paramentação, seria muito trabalhoso, além de representar risco. Tomo café no hospital e capricho um pouco mais na refeição porque a próxima não acontecerá antes das 3 da tarde, e ainda nem 8 da manhã são.
A rotina segue no subsolo do hospital. Eu, assim como toda a equipe, troco a roupa por um pijama cirúrgico sobre o qual outras camadas (gorro, máscara, óculos de proteção e capote) permanecerão até a pausa para o almoço. Já chego à unidade, onde vou passar as próximas horas, transpirando sob o capote, que, impermeável, retém o suor, deixando úmido o pijama de algodão. Nas próximas horas, sentirei frio com a climatização do ar-condicionado da unidade e da roupa molhada.
O desconforto torna-se imperceptível quando tomo ciência dos pacientes que deixei no dia anterior e que, eventualmente, experimentaram deterioração do quadro clínico. Defino a condução dos casos em discussão à beira do leito, em ronda com a equipe multidisciplinar. A Medicina Intensiva é uma criação coletiva de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e outros profissionais que colaboram com o tratamento desses pacientes tão graves e dinâmicos.
Sou médico há quase 25 anos, especialista em Medicina Intensiva (atividade dos médicos que trabalham em CTI), há quase 20. Antes da terapia intensiva, o treinamento foi em Medicina Clínica. A especialidade me encantou por aliar o raciocínio clínico ao dinamismo do resultado imediato das ações médicas. No entanto, jamais imaginei viver este cotidiano nem que participaria de uma guerra.
No início da pandemia, eram o medo e a incerteza, inclusive de servir como transmissor, para familiares amados, dessa doença potencialmente letal. Passados quase 10 meses, quando já se banalizou a rotina cansativa, há um misto de esgotamento e raiva, sobretudo com discursos negacionistas e comportamentos de risco endossados por algumas autoridades que insistem em prestar desserviço à população. A esperança repousa na vacinação tão desejada e agora, aparentemente, a poucos passos de distância. Não é hora de deixar a guarda baixar.
No percurso, perdemos amigos. Ainda esta semana, soube da morte de uma colega, pouco mais velha do que eu e com quem trabalhei há muitos anos. Assim como eu, ela também atuava diretamente no enfrentamento da doença.
Não tive covid e não consigo explicar como. Há poucos dias, contabilizei, em um dos CTI onde trabalho, que pelo menos um terço dos pacientes entubados tinham sido por mim. É claro que não vacilo nos cuidados, sobretudo em momentos de maior risco, como a entubação, em que sigo um rito quase religioso de repetição mental da sequência de ações. Nossos instrumentos para antever riscos e desfechos nessa doença são juvenis. Ainda não sabemos muito mais do que sabemos sobre a Covid-19.
Houve um momento, há cerca de 3 meses, quando o número de pacientes havia reduzido substancialmente com o isolamento social, que imaginamos ter sido o pior momento. Vã ilusão. A segunda onda, ou como queiram chamar a maré em que nos encontramos, chegou com força para nos dar um novo e caprichado caldo. Os números mostram (não os do governo Federal, que, até na contabilidade vergonhosamente se omite, mas o do consórcio de veículos de comunicação) que a covid, doença causada pelo SARS-CoV2 e que se complica numa minoria percentual de pacientes com a temida e potencialmente fatal Síndrome Respiratória Aguda Grave, veio para ficar e abarrotar as nossas unidades. O número de leitos dedicados aos pacientes com covid voltou a aumentar, mobilizando novamente nossos esforços, nos mesmos moldes de maio de 2020. Dezembro foi o novo junho.
O dia segue, e amealhamos algumas alegrias e tantas outras tristezas. Invariavelmente, pacientes pioram e precisam ser entubados, começar hemodiálise ou receber suporte circulatório. O turno acaba, mas a sensação, ao deixar a unidade, é a de que vários afazeres ficaram inacabados. Por sorte, a equipe da noite chega com espírito renovado e assume tais responsabilidades.
Chego em casa, tiro as roupas ainda na porta e sigo direto para o banho. Os beijos e abraços na família têm que esperar. Eles são a parte mais importante do dia, renovam as forças; afinal, amanhã tem mais.
Rodrigo Hatum é médico especialista em Medicina Clínica e Medicina Intensiva. Trabalha no Instituto Nacional do Câncer (INCa), no Hospital Marcos Moraes e no Hospital Vitória (Americas Medical City).