As convicções políticas de meu bisavô não o colocavam como uma pessoa religiosa, mas certamente seu humanismo foi o que lhe permitiu fazer projetos de tantas igrejas e capelas, com um grande senso de espiritualidade. Entre essas, estão alguns dos mais belos edifícios para tal finalidade, mesmo sendo a arquitetura religiosa um dos maiores depositários da genialidade humana ao longo da história, com milhões de construções extraordinárias.
Agora, uma decisão política resolveu trazer de volta um projeto sobre o Museu da Bíblia, em Brasília, pedido que Niemeyer recebeu do governo anos atrás, ao qual prontamente respondeu, com croquis e estudos, e que ficou, apenas no projeto, assim como a Praça do Povo e outras tantas ideias que não saíram do papel.
O Brasil enfrenta uma grande crise econômica e sanitária, e, na minha opinião, este não é o momento para gastar uma verba expressiva, em meio a tantas prioridades e urgências, com a construção de um museu, enquanto até prédios importantes do Oscar ainda estão à espera de finalizações, em Brasília. O Instituto Niemeyer, do qual sou presidente, até foi consultado de forma pontual. Agora, a imprensa sinaliza que será aberto um concurso (formato que dá menos garantias à sociedade) para a escolha de um projeto, não mais de Niemeyer e não mais respeitando o conjunto de obras que levou o Brasil ao mapa da modernidade, há 60 anos.
Isso já seria uma questão de grave desrespeito à memória do arquiteto-símbolo do Brasil, porém creio que meu bisavô, muito mais do que a defesa de seu projeto plástico-arquitetônico, estaria advogando uma outra abordagem para a função do museu.
Num momento em que o Brasil dividiu-se em opiniões antagônicas, tenho certeza de que ele diria que o certo seria transformar a ideia em “Museu do Sagrado”, onde todas as religiões — a Bíblia católica e pentecostal, as matrizes africanas, a sabedoria espiritual indígena, os escritos judaicos, os rituais das religiões orientais, os mandamentos mulçumanos, as igrejas ortodoxas, ecumênicas, holísticas e novas religiões — pudessem conviver em harmonia, transformando esse museu num lugar da crença de todos os povos, que sempre encontraram no Brasil um espaço de harmonia e celebração das diferenças. E, dessa forma, apresentar toda a beleza de nossas festas e tradições religiosas, impossíveis de separarem de nossa cultura e da fé absoluta do brasileiro.
Achamos que este não é o momento, mas, se o Brasil quer celebrar sua profunda religiosidade, precisa ser inclusivo e universal e mostrar ao mundo nossa face mais democrática e progressista. E, principalmente, usar dinheiro público para fortalecer o Estado laico, que não privilegia nenhum segmento religioso.
Essa é a ideia que defendo e o foco da instituição que presido, o Instituto Niemeyer, criado com meu bisavô, para manter seu legado humanista e sua obra. O arquiteto que levou o nome do Brasil a uma posição de destaque ímpar, do qual todo brasileiro deveria orgulhar-se, merece respeito. Falo, principalmente, daqueles que decidem o perfil e a vida do País.
Paulo Sérgio Niemeyer é arquiteto, presidente do Instituto Niemeyer, conselheiro estadual da Cau (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), presidente e fundador do Instituto Niemeyer.