Fiquei viúva aos 63 anos, e isso foi um golpe muito duro. O ano de 2010 chegava ao fim, quando a morte levou Álvaro, meu segundo marido, justamente na véspera do Natal. Foi uma morte súbita, que tirou o meu chão, deixando-me num espaço vazio e sem saber o que fazer, com a sensação de perda e abandono. Escrever foi uma das saídas para recomeçar a viver. Relutei, mas, numa das noites em que o tempo não passava, decidi escrever um poema que me inspirou a começar: “Tem noites em que a mente fervilha diferente, e um texto vai nascendo… Tem noites em que o pensamento desfila num cortejo de emoções… Tem noites em que as mãos suadas de medo vão construindo palavras e frases… Tem noites em que o coração bate descompassado com a incerteza e a solidão… Tem noites que não são noites mas um sol que ilumina a criação…’.
À época, procurei textos que me consolassem, que me dessem esperanças, que me fizessem achar que a minha vida não teria de acabar ali. Li sobre viuvez; tudo era muito sóbrio, com viés psiquiátrico. Acabei encontrando o amparo que buscava em livros de filosofia e nos de ficção, sobretudo nos de poetas, como Fernando Pessoa e Pablo Neruda, autor que tive o privilégio de conhecer na Isla Negra, no Chile, onde ele passou boa parte da sua vida. Mas essa é uma história para outro relato. Voltemos ao que me move aqui.
Foi então que me dei conta da invisibilidade das viúvas numa idade mais avançada, tendo que se remodelar, aprendendo a viver numa solidão, dentro de portas que teriam de ser azeitadas para se abrirem ao mundo novo.
A ideia de escrever um livro sobre a viuvez nessa idade começou a tomar conta de mim. Queria, mas não tive coragem durante certo tempo. Comecei a pesquisar e entrevistei cem viúvas de 65 a 80 anos — queria conhecer seus sonhos, seus anseios e como administravam sua vida social, financeira e amorosa.
Algumas das conversas aconteceram de forma remota; outras foram presenciais; uma e outra num banco de praça, em clima prosaico. Todas foram reveladoras. Foi incrível descobrir, em cada uma dessas mulheres, como cada ser humano lida com a dor de uma maneira diferente, criando conflitos existenciais diversos, regados por emoções até então desconhecidas. A solidão era um fator comum a todas as cem.
Quis escrever um livro que fosse, antes de tudo, sobre esperança. Há ali dor e tristeza, mas há também um novo horizonte à frente. Só consegui escrever, portanto, depois de ter uma relação tardia e queria compartilhar esses momentos de perda, de reconciliação com a vida e com o amor. Não é fácil quebrar paradigmas. Mulheres na minha idade se casaram e tiveram filhos bem cedo. Era o curso natural da vida burguesa.
Descrevo-me como geração 68+, descolada, mais ativista, já na universidade. Mesmo assim, fazendo uma retrospectiva, muitos sinais burgueses permaneceram. O tempo que passei estudando em Paris abriu muito minha mente com as manifestações de 1968, das quais participei, mas não consegui me descolar totalmente da educação rígida que tive. Foram esses os primeiros pensamentos que me ocuparam nessa primeira fase da viuvez.
O tema da sexualidade foi, talvez, o mais importante. Um número considerável afirmou que não teria paciência de recomeçar, que sexo não era mais importante, que preferia dedicar-se à família, viajar ou permanecer em grupos de mulheres. Todas, em algum momento depois da viuvez, apresentaram dúvidas quanto a relações sexuais futuras, libido e a idade de um possível parceiro. Foi unanimidade que ter um homem mais novo significaria ter que abrir a carteira; outras ainda estavam presas a um status de ter um homem provedor.
Das entrevistadas, 33 não queriam ter outra relação amorosa e 60 gostariam de ter alguém na sua vida, porém se davam conta de que não seria fácil numa sociedade onde existe a concorrência com mulheres mais novas; dessas, só cinco considerariam um homem mais jovem. Poucas escolheram ter relações com outra mulher ou relações fluidas com bissexuais.
No meu caso, meu atual marido foi muito paciente. Eu o conheci em 2014/2015. Na primeira vez em que saímos para jantar, foi difícil sair de casa: ele me esperou na portaria, eu saía, trancava a porta e, em vez de ir até o elevador, reabria a porta e entrava de novo em casa. Essa situação se repetiu várias vezes naquela noite, até eu sair e descer em definitivo (risos). O homem que sai com uma viúva tem de estar munido de paciência, perseverança e entendimento.
Esse livro é a minha mensagem positiva de que nada é para sempre — nem dor, nem alegria, pois o tempo é passageiro e mutante. No Brasil, o percentual do número de mulheres viúvas é muito alto, estando 55% delas acima dos 70 anos, praticamente a maioria das pensões do INSS. Continuamos a ser invisíveis! Nesse livro, eu quis dar voz a essas mulheres!
Algumas pessoas me criticaram por eu me expor demais nesse novo livro. Disse a elas que sempre me expus — a vida inteira. Decidi, inclusive, que só quero escrever sobre mulheres. Temos de discutir muitas coisas na sociedade brasileira de hoje.
Yvonne Bezerra de Mello é pedagoga. Há 20 anos, fundou a escola Uerê, no Complexo da Maré, projeto de educação escolhido pelo Unicef como um dos seis métodos mais eficientes em zonas de guerra, com ensino diferenciado para problemas cognitivos. Ela lança, virtualmente, nesta quinta (17/12), seu oitavo livro, “Relações tardias” (Batel), sobre a viuvez acima dos 65, com uma entrevista ao historiador Ricardo Cravo Albin, na Argumento, transmitido pelo YouTube. O prefácio é da escritora Ana Arruda Callado e a orelha, da jornalista Anna Ramalho, ambas viúvas.