Aldir Blanc recebeu uma homenagem póstuma que faria jus ao seu histórico. Compositor ilustre, é autor, ao lado de João Bosco, da trilha sonora dos brasileiros que lutaram contra a ditadura militar. Aldir tem uma obra vasta e grandiosa, que traduz de forma fidedigna o subúrbio e a classe trabalhadora. Por isso, teve o nome escolhido para batizar a lei que socorreria profissionais da cultura, excluídos pelo presidente da República do auxílio emergencial. Nada mais simbólico em celebrar, portanto, um ícone das artes no Brasil, morto em decorrência da COVID-19 num hospital público universitário, localizado no bairro de Vila Isabel.
De autoria da deputada Benedita da Silva e relatoria de Jandira Feghalli, a Lei Aldir Blanc foi sancionada em 29 de junho a fim de destinar R$ 3 bilhões a estados e municípios de todo o país. Oriundo do Fundo Nacional de Cultura (FNC), o volume de recursos é o maior já direcionado ao setor pelo governo federal. Mas Bolsonaro cravou a sua marca da maldade ao vir liberando o dinheiro a conta gotas de uma lei que sancionara dois meses depois do início da crise sanitária. Em novembro, muitos municípios e estados ainda não haviam recebido o aporte.
A correria tornou-se inevitável para que os recursos fossem empenhados em tempo recorde até 31 de dezembro. Nessa terça (29/12), uma Medida Provisória de prorrogação da Lei Aldir Blanc foi aprovada. O ministro sanfoneiro do Turismo (Gilson Machado) anunciou o feito nas redes sociais do presidente, seu amigo íntimo, mas, por conveniência, “esqueceu” de sinalizar que quem não empenhar até amanhã, último dia do ano, terá de devolver o dinheiro para os cofres da União. Não haverá tempo hábil para o cumprimento da burocracia administrativa e já se tem notícias de que gestores derrotados nas eleições municipais estão jogando a toalha.
A Lei Aldir Blanc não privilegia trabalhadores da Cultura, pelos quais Bolsonaro tem verdadeira aversão. É um mecanismo de reparação por sua atitude cruel em subalternizar uma categoria que ele, recorrentemente, busca não reconhecer. Se alguém tinha dúvidas da arapuca armada por Bolsonaro neste processo de execução da Aldir Blanc, todas essas foram dirimidas diante dos acontecimentos dessa terça-feira (29/12). Em meio ao recesso parlamentar, Jandira Feghalli tem travado uma luta solitária. A classe, de Norte a Sul do Brasil, está inexplicavelmente em silêncio absoluto. E no Rio, em particular, a situação é ainda pior com o prefeito preso e um governador, cujo maior feito dos últimos meses foi a inauguração da decoração natalina do Palácio Guanabara, local em que dá expediente.
Aldir Blanc não merecia.
Vagner Fernandes é jornalista, pesquisador e escritor — lançou a biografia “Clara Nunes — Guerreira da Utopia”, pela Editora Ediouro, em 2007, reeditada em 2019 —, e, há mais de 20 anos, cobre reportagens na área de Cultura.