Quando pensamos em masoquismo (originário do escritor austríaco Masoch), lembramo-nos das pessoas que “gostam” de sofrer. Primeiramente, o conceito estava ligado a alguém que, para ter prazer sexual, necessita ser maltratado, ter algum tipo de dor durante a relação — como se fosse necessário andar num caminho espinhoso para, depois, ser recompensado ao chegar a um pomar cheio de frutas palatáveis.
Sabemos que o masoquismo funciona como uma gangorra, ou seja, no outro lado, está sentado o sádico (derivado do Marquês Sade), aquele que também curte impor sofrimento ao outro. Sadismo e masoquismo caminham de mãos dadas.
No entanto, também podemos ampliar a visão do masoquismo para outras vivências do cotidiano: pessoas muito religiosas precisam impor-se algum tipo de castigo ou expiação para se livrar de pecados que acham ter cometido. A punição pode ser através de reza, jejum ou mesmo sofrimento físico.
Nas psicoterapias, percebemos, na vida das pessoas ditas “normais”, a presença de condutas masoquistas. Pessoas que se entregam nas mãos de alguém que vai proporcionar-lhes prazeres, cuidados e amores, acabam submetendo-se a sofrimentos e abusos em nome de ser protegidas, cuidadas. Trata-se, claramente, de uma postura masoquista.
O ser humano é, por natureza, agressivo, e, neste período de confinamento e pandemia, aumentaram as agressões mútuas já que existem muitas perdas e temores diante da finitude, o que pode acarretar atitudes agressivas. O contato amiúde, muito próximo e por maior tempo entre familiares, seguramente, aumenta a possibilidade dessas atitudes de abusos. Alguém com características masoquistas pode colocar-se como o “bode expiatório” dos outros e ficar como lixeira, onde o grupo familiar, ou mesmo no trabalho, escolhe-a para a depositária desses impulsos agressivos.
Vamos pensar num exemplo na vida amorosa e sexual. Imaginem um homem com ejaculação precoce, ou mesmo com impotência. Ele tende a ficar aborrecido, usa Viagra mas as coisas não se resolvem, até porque o Viagra não tem todo esse poder, e tendo ao seu lado uma mulher desvalorizada e masoquista, achando que tudo que sai errado é culpa dela etc. A situação é perfeita para que esse homem diga que seu desempenho sexual vai mal porque essa companheira não ajuda ou é incompetente. Ela poderá submeter-se a todos os desejos do companheiro e dispor-se a se relacionar sexualmente com outras pessoas, ou de formas que não gostaria. É um masoquismo, na forma punitiva, não física, mas psicológica, pois não é algo que não desejaria fazer, mas inconscientemente se dispõe.
Temos necessidades de despejar de nosso imaginário ansiedades, irritações, frustações, como se fosse uma alternativa para nos sentirmos aliviados. Claro, esse mecanismo inconsciente não funciona.
Vou compartilhar com vocês uma experiência de terapia. Um paciente se depreciava, permitia ser maltratado com palavras por amigos colegas e familiares. Estava sempre deprimido. Se eu oferecia alguma observação boa, tratava de desqualificar minha oferta. Estar com ele era difícil; eu tinha vontade de mandá-lo embora da terapia. Um certo dia, o surpreendi: pedi que comprasse um “chicote ou relho”. Ficou surpreso e perguntou para que serviria esse objeto. Falei que ele se chicoteava inconscientemente e lhe causava sofrimento. Se, na sessão, começasse a se desqualificar e se colocar para baixo, eu pegaria o chicote e bateria nas pernas dele. Ficou de “olhos arregalados”. Expliquei que poderia fugir desse agressor externo que seria eu, mas não conseguia fugir da agressão interna que ele se perpetuava. Comprou o chicote. Essa situação está relatada no livro a “Arte de ser infeliz — desarmando armadilhas emocionais”. Ficou esse simbolismo entre nós e para sua vida cotidiana.
Se percebemos que alguém deseja depositar em nós suas mazelas emocionais, seria saudável não deixarmos colar em nós esses maus fluídos. Uma possibilidade de romper com tal padrão de funcionamento pode advir das psicoterapias, onde se oferece mais intimidade com a psique da pessoa sofrida.
O dito masoquista não rejeita ficar de depositário do lixo emocional dos outros; ao contrário, sai catando mais lixo e vai carregando pela vida. E o pior: não se percebe nesse papel!
Nelio Tombini é psiquiatra. Desenvolve projeto psicoeducativo com vídeos, seminários e o livro “A arte de ser infeliz – desarmando armadilhas emocionais”.