Todo leitor costuma ter um autor preferido.
Mas o autor também tem um tipo de leitor que cala mais fundo em sua alma.
O meu é aquele que diz “Parei de ler quando você falou XXX”.
Normalmente, XXX está no comecinho do texto ou, no máximo, chegando na metade.
Ou seja, o leitor não leu o texto. Achou que estaria jogando fora seu tempo — e se era para jogar o tempo fora, que fosse escrevendo um comentário ao autor dizendo que parou de ler em tal ponto.
Esse leitor é bom porque só aprecia textos lineares. Porque não demanda, por parte do autor, qualquer tipo de esforço argumentativo ou estilístico. Ele quer ler o que já sabe, aquilo com que concorda, e pronto.
Ele não precisa de um escritor, mas de um goustiráiter. De alguém que psicografe o que ele não consegue pôr no papel. É um leitor funcionalmente analfabeto, por assim dizer. Do tipo que não consegue escrever e, para compensar, também é incapaz de ler.
Sabe aquele esquema de tese, antítese e síntese? Ele trava na tese ou empaca na antítese — a síntese permanece feito a beleza de uma Bruna Lombardi, inatingível.
Quer manter esse leitor a prudente distância? Use ironia. Essa palavra inexiste no seu dicionário (e olha que ele já procurou na letra H, de ponta a ponta).
Quer exorcizá-lo? Lance mão da dialética. Dialetizou, esse leitor pira.
Esse leitor é o meu favorito porque… bem, se você chegou até aqui sem mandar uma mensagem dizendo “Parei de ler quando você disse que seu leitor favorito é o que aprecia textos lineares” ou “Parei de ler quando li goustiráiter”, saiba que você é que é o meu leitor favorito. Você sacou de cara a ironia e vinha se divertindo com ela.
Meu autor preferido é o que me leva por caminhos que eu não conheça. Que me diga coisas que não sei, ou que eu até sabia, mas não com aquela nuance, aquelas implicações.
“Autor” é, literalmente, “o que faz crescer”. É aquele que tem autoridade, que inaugura (Etimologia é uma coisa linda, né não?). E “leitor” é o que colhe (uma fruta no pé), que escolhe (a melhor fruta para colher); tem a mesma origem de “eleitor” e de “inteligência” (que é fazer a melhor escolha).
(Já falei que Etimologia é uma coisa linda, mas não custa repetir, porque ela é a Bruna Lombardi da Gramática.)
Meu autor preferido é o que me possibilita (me autoriza) a ter acesso ao que não sei; o que inaugura coisas para mim. Meu leitor preferido, o que faz a colheita do meu plantio.
Leitor e autor não podem ser como dupla sertaneja, em que um canta e o outro mexe os lábios. Tem que ser um dueto, um repente, uma troca de passes, um tango, um padedê.
“Parei de ler quando você escreveu padedê” indica que alguém deixou o autor falando sozinho. Que alguém quis colher jaca num pé de jabuticaba. Procurar ironia na letra H. Acreditar que beleza tenha a ver com juventude. E foi embora amaldiçoando a jabuticabeira, o dicionário, a maturidade – que só apura a beleza.
Se você chegou até aqui, é porque nos permitimos o tempo de plantar e o tempo de colher. Volte sempre. Você é o meu leitor preferido.