Durante anos, sonhei com uma redução de minhas atividades empresariais para ter tempo para a literatura — tanto para a leitura como para a escrita. Há poucos anos, tomei coragem e me joguei de corpo e alma nesse mundo. Um curso de pós-graduação em formação de escritor, várias oficinas de escrita criativa e, finalmente, por volta dos 60 anos, comecei a escrever. Uma primeira coletânea de contos e poemas com vários autores, um livro em coautoria, e minha primeira obra individual, um livro de contos. A minha mudança de vida foi antes da pandemia. Não foi fácil, mas me ajudou muito a vencer este confinamento.
Eu tinha um trabalho muito externo, viajando para vários países, com equipes grandes. Quando mudei para a escrita, sofri um pouco por ser uma atividade muito solitária. No entanto, por incrível que pareça, escrever me deu uma robustez interior, um certo antídoto para o confinamento. Não foi proposital, até porque não sabia o que iria acontecer, mas ajudou e está ajudando muito a vencer estes duros tempos. Adicionalmente, para escrever melhor, preciso ler mais, que agrega mais valor ao meu mundo confinado.
Mas queria me sentir completo, queria escrever meu primeiro romance; aí, surgiu a pandemia.
Pensei: agora não tenho desculpas, meses confinado, sem distrações, tudo conspirava para minha grande obra-prima. Desenhei a história, delineei alguns personagens, e comecei a escrever.
O que eu não contava era que esse confinamento ia me privar de outra paixão, adquirida também por volta dos 60 anos: minha primeira neta. Morando ela em SP, e por todos os riscos do meu grupo de risco, fui privado de sua presença física desde o primeiro dia.
Comecei a contar as horas para nossos zooms diários. Abri um canal no YouTube, só para ela, onde passei a ler e a criar histórias. O romance foi deixado de lado, mas, certo dia, recebo um telefonema que ia abrir novos caminhos para minha escrita.
Era minha editora me convidando para participar de uma coletânea de poemas e contos infantis em torno da pandemia, sendo eu um dos poucos participantes a não ter experiência em literatura infantil. O que não sabia era que minha experiência de neto, filho e avô iria me ajudar tanto. Tive a sorte de ter pais e avós bons contadores de histórias e um certo tempo de prática com minha neta.
Não foi de todo fácil. Como falar para crianças pequenas dessa doença? Como ser suave diante da dureza deste momento?
Resolvi assumir a voz da criança: escrevi em primeira pessoa, como ela própria fosse. E chamei o conto de “Os Bichos”, sendo o bicho da Covid mais um deles. Usando a comparação com bichos ferozes, animais domésticos e outros, acho que consegui levar beleza para uma história tão difícil.
Eu teria tido todo o tempo do mundo para escrever um grande romance, de mais de 300 páginas, mas acho que as oito páginas desse conto tem para mim o peso e importância similar.
Já pude reencontrar minha neta, depois de sete meses de afastamento. Ainda não levei o conto, dedicado a ela, pois o livro completo, denominado “Conto em Casa”, está em fase final de produção, com lançamento previsto para 27/11.
Voltei para o Rio cheio de inspiração, para retomar uma produção mais robusta, mas, como essa pandemia persiste e novas ondas se anunciam, acho que vou continuar tentando suavizar a vida, escrevendo para crianças.
Quem sabe se essa pandemia não formou um novo autor infantil?
E o romance? Ah, ele fica para depois da vacina! Como muitas outras coisas…
Gustavo da Rocha Lima é escritor, depois de mais de 30 anos como executivo de multinacionais. É coautor dos livros “Despedaços” (editora Oito e Meio) e de “A Vista do Rio: histórias e personagens da Vista Chinesa” (ID Cultural). Em 2019, publicou seu primeiro romance, “O Amolador de Facas”. Este mês, lança, com outros autores, o livro infantil “Conto em Casa”, pela Editora Raiz.