Sou aquele sujeito que lê dicionário como quem lê romance. Cada verbete é um personagem, uma subtrama.
Sou aquele cara estranho que não acredita na alma da Bíblia, mas nas almas do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss.
Porque a estrutura de arame e madeira das esculturas de gesso, o elemento de sustentação em torno do qual se modelam as de barro é alma.
A parte correspondente à altura dos perfis metálicos é alma.
A peça de couro colocada entre a palmilha e a sola do calçado para reforçá-lo é alma.
A parte de um estopim que contém o núcleo de explosivo é alma.
Nos dicionários estão não somente os poemas que esperam para ser escritos, mas as palavras no palco onde podem ser outras, ser tantas.
Viúva é a última linha de um parágrafo impressa sozinha na parte superior de uma página. A primeira linha de um parágrafo impressa sozinha na parte inferior de uma página é uma linha órfã.
Adoçar é o ato de nivelar, aplainar, desbastar saliências ou alisar e aplainar madeiras.
Cada uma das folhas de uma dobradiça é uma asa.
O apêndice em forma de argola, ou semicircular, de certos utensílios, que serve para os segurá-los é asa.
São asas as duas pétalas laterais da flor das papilionáceas; o apêndice sedoso de certas sementes que permite ao vento disseminá-las.
É asa é a ala lateral de um prédio, a nave lateral de uma igreja.
A viga onde engastam-se os degraus das escadas é banzo. A peça em pedra ou madeira, em balanço, que dá sustentação aos beirais e ao piso de sacadas ou balcões é um cachorro.
A pequena peça de madeira, em forma de cunha que evita o deslocamento das vigas ou dos sarrafos é uma espera. Num encaixe, a peça que traz uma saliência é macho. A que traz uma reentrância é fêmea.
No dicionário cada palavra – macho, fêmea, cachorro, banzo, asa, viúva, órfã — tem uma multidão de almas à sua espera.