Ao abrir as minhas redes sociais na última quarta-feira, as inúmeras postagens de amigos e colegas mencionando “estupro culposo não existe” chamaram minha atenção. Curiosa, fui ler as notícias, e apareceu uma reportagem sobre a promotora de eventos Mariana Ferrer, 23 anos, dopada e estuprada durante uma festa em 2018. Eu já tinha ouvido falar do caso, mas, até então, nunca tinha visto as imagens da audiência, aparentemente inéditas.
Além da sentença final que inocentou o réu e deixou muitas pessoas revoltadas — inclusive, eu —, algo me chamou particularmente atenção nesse vídeo: a forma de se colocar da defesa e sua tentativa de intimidação da vítima, na hora de conduzir sua argumentação. “Não dá para dar o teu showzinho. Teu showzinho, tu vai lá dar no Instagram depois”. Parecia um pai irado, falando com uma criancinha. Mariana respondeu, pedindo respeito, com razão.
A forma como o advogado se expressou demonstrou claramente uma falta de respeito e consideração, e me parece ter sido uma forma intencional de gerar constrangimento e uma sensação de impotência na vítima, para fragilizá-la emocionalmente e levá-la a desistir da acusação ou de seus argumentos. É muito comum observar essa maneira de se colocar nas interações do dia a dia, tanto nas famílias quanto nos ambientes profissionais.
Como especialista em Comunicação Não Violenta (CNV), minha percepção da maneira como as pessoas interagem e dos jogos psicológicos é muito aguçada. Embora a maioria das pessoas não se considere violenta, esse tipo de colocação é relativamente comum e soa como humilhação para quem recebe a mensagem, ainda mais quando isso acontece na frente de outras pessoas. Em uma cultura de dominação, medo, culpa e vergonha costumam ser utilizados para manipular e aumentar a sensação de vulnerabilidade, a fim de manter o poder sobre o outro.
Esse é um dos motivos pelos quais muitas vítimas de assédio e violência sexual desistem de denunciar seus agressores. Uma pesquisa do Ministério Publico destaca pelo menos sete motivos:
1. as vítimas costumam não identificar o que sofreram como assédio (falta de consciência ou tendência a pensar que isso é “normal” porque é comum);
2. medo do agressor/assediador e de represálias (perda do emprego, agressão…);
3. medo de que as pessoas não acreditem nelas, além do medo de ser rejeitadas;
4. sentimento de vergonha em se expor e expor os fatos;
5. sentimento de culpa;
6. inversão de papéis: as vítimas são acusadas de ter provocado o ato, o que representa uma segunda violência, insuportável;
7. medo de ser exposta, enfrentar todo o sofrimento gerado por essa exposição ao longo do processo e ver o agressor ser inocentado.
Recentemente, uma pessoa que assistiu a uma palestra minha sobre assédio, veio falar comigo para me dizer que foi demitida alguns anos atrás, poucos dias depois de ter sido chamada na sala do vice-presidente da empresa onde trabalhava, e ter se recusado a deixá-lo tocar nela e beijá-la. Disse que nunca tinha tido coragem de contar isso para ninguém, nem para o marido. Fiquei triste e revoltada ao mesmo tempo.
Por outro lado, entendo que, muitas vezes, ignorar a situação e seguir em frente possa ser menos doloroso do que enfrentar uma denúncia e toda violência psicológica sofrida durante a exposição dos fatos. Entretanto, minha recomendação é que a vítima sempre procure uma pessoa de confiança para falar e o apoio de um profissional de saúde competente para facilitar o processo de cura do trauma emocional. E que desistir de denunciar seja uma escolha bem resolvida.