Fui grande amigo do Millôr Fernandes, um gênio, o maior crítico de costumes que este país conheceu, um observador fantástico do cotidiano. Todos os dias, lembro-me de uma frase que ele proclamava: “Como são maravilhosas as pessoas que não conhecemos bem”. E eu me defronto com essa realidade, com uma categoria.
Estava eu em Brasília e me encontrei com um advogado. Ficamos conversando, e eu lhe perguntei: “Qual a sua especialidade? O senhor é criminalista? Ele respondeu: “Não, eu sou ‘delacionista'”. Delacionista virou uma nova categoria — ele é especializado em delação.
Nos anos da ditadura militar, os presos, se não delatassem, morriam, desapareciam, porque ninguém resistia à tortura que era imposta. Hoje tem uma forma diferente, tem uma negociação perversa, estranha e cara. Então, essa categoria… Eu, enfim, tenho aí meus 50 anos de andanças nos corredores da Justiça Criminal; não posso imaginar, não posso compreender quem se presta a esse papel porque foi o que Joaquim Silvério dos Reis representou.
A delação premiada está nas Ordenações Filipinas do Reino de Portugal, em 1595. “Oh!… É tão moderno isso que estamos aplicando, importando dos países desenvolvidos”. Mentira, ela é atrasada, a delação é da Idade Média; a delação não é nada moderna, nada! E Joaquim Silvério dos Reis fez a delação premiada e ganhou o quê? Ganhou o título de Coronel do Exército, virou coronel, mas mantendo o seu patrimônio enorme. Pôde voltar para Portugal, deixou de morar no Maranhão.
Mas, hoje, o feriado é de quem? O feriado nacional é do Joaquim Silvério ou de Tiradentes? O preito que nós rendemos, a homenagem que prestamos é revolucionária: é Tiradentes morto, esquartelado porque delatado por uma delação. Então, Joaquim Silvério dos Reis é o símbolo da canalhice, é o símbolo do que há de pior da natureza humana. E nós temos que repetir, conviver com a repetição desse tipo de prática, de exercício profissional, construindo essa nova categoria de delacionistas, delatores, traidores.
Fico emocionado ao lembrar os anos de tensão; ao mesmo tempo, tem o sentimento da alegria de ter cumprido um dever cívico na advocacia. E quando nós começamos, quando nos envolvemos na advocacia de perseguidos políticos, não éramos bem-vindos nos ambientes sociais; não tínhamos clientes que pudessem pagar honorários. Até porque nós não cobrávamos honorários de presos políticos.
Essa era a regra, a tradição da advocacia cívica desde o Tribunal de Segurança Nacional, onde muitos advogados que atuaram neste tempo também atuaram naquele tempo. A classe dominante, que poderia pagar os honorários para manter os escritórios funcionando, não nos procurava – éramos os advogados dos inimigos do regime, éramos os inimigos da Nação, éramos advogados de subversivos, comunistas.
Comecei muito cedo, ainda estudante, por causa do meu pai, e entrei inteiramente seguindo os passos dos meus companheiros mais velhos, seguindo o exemplo dos advogados criminalistas que tinham esse compromisso na advocacia de perseguidos políticos. Quantas vezes, eu me lembro, ia ao banco; era chamado para pagar, assinar nota promissória para pagar a funcionários, pagar a secretárias, pagar o telefone.
Hoje, somos homenageados, somos lembrados, considerados heróis da resistência, da democracia. Os erros de hoje são muito parecidos — mudam os perseguidos, mudam as perseguições, muda o fundamentalismo, mas a mentalidade repressiva, o ódio à liberdade, o horror à justiça são os mesmos. E aí continuamos sofrendo, continuamos criminalizados porque agora é diferente; agora, os perseguidos são os que me podem pagar.
Não podemos esquecer as coisas que aconteceram; ainda há alguns sobreviventes aqui, para lembrar, para contar a história. No entanto, temos que deixar o registro, não para nós mesmos, mas para os depois de nós. Hoje nós podemos contar, mas é preciso contar para depois, quando nós não estivermos mais aqui.
O que eu diria aos advogados jovens que estão iniciando na profissão?
“Lutar pela liberdade, ser implacável com a truculência, com a violência, com a burrice, com a censura, com tudo aquilo que signifique aquele brado de abaixo a inteligência, viva a morte. Vamos lutar pela liberdade na democracia, para fazer este país inteligente.”
Técio Lins e Silva, é advogado criminalista, jurista, professor, escritor, ex-secretário de Justiça do Rio, ex-integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ex-presidente do IAB (Instituto Brasileiro do Advogado). Nome muito respeitado na área.