Certas letras de música se “perdem na tradução”, ou melhor, são menos compreensíveis a quem não é familiarizado ao tempo e lugar de sua criação. Tanto que há hits bem ligados ao Brasil da volta à democracia, como “Que país é este” (Legião Urbana), “Até quando esperar” (Plebe Rude) e “Inútil” (Ultraje a Rigor). E qual trilha dá o tom destes dias de pandemia e dúvidas sobre nossa democracia?
Fico tentado a imaginar o que diriam Cazuza, Raul Seixas, Renato Russo e outros roqueiros, que já partiram, após terem cantado a aurora da atual quadra democrática. Se estivessem aqui, talvez dessem recados em verso, prosa e posts (ou filmes, como o líder da Legião sonhava fazer um dia). Algumas das melhores músicas dos três foram criadas sob o efeito de frustrações coletivas, como as de hoje… Não à toa, têm mantido a atualidade, mesmo relativa, o que se deu à revelia dos criadores.
Dia desses, o jornalista Rodrigo Casarin cravou “La Maison Dieu” como letra mais atual da Legião Urbana. Boa proposta. Eu mesmo já atestei que “Perfeição” seguia muito atual 20 anos após a morte do autor. Se tivesse de escolher uma só letra de Renato Russo ilustrativa de como ele poderia estar enxergando este país de “terra arrasada”, eu arriscaria “Metal contra as nuvens”, gravada em V (1991), disco com faixas melancólicas de um letrista desapontado com a vida pública — do choque pelo Plano Collor e denúncias de corrupção – e a vida íntima, sob efeito de saber que contraíra aids.
“Quase acreditei na sua promessa/ E o que vejo é fome e destruição/ Perdi a minha sela e a minha espada/ Perdi o meu castelo e minha princesa.” Versos como esses ressoa(va)m a tristeza por rumos de um governo eleito sob o signo de uma “reconstrução nacional” (ou desconstrução, eu diria hoje). O eu-lírico desabafava que guardará seu tesouro, se quem fez a promessa estiver mentindo, e repetia um alerta em tom de ameaça: “olha o sopro do dragão”. No fim, o recado talvez de esperança (“tudo passa, tudo passará”) e a aposta de que “teremos coisas bonitas para contar” e “apenas começamos”.
Renato cantava frustrações não só dele desde sua primeira banda, o Aborto Elétrico, em letras sobre abusos policiais (“Veraneio vascaína”), drogas (“Conexão amazônica”) e maniqueísmos ideológicos (“Despertar dos mortos”). Com o tempo, foi dando mais ênfase a temas íntimos, como a família, do que nacionais. Fez trajeto oposto ao de Cazuza, que, no início, focalizava dramas de jovens urbanos como ele e só depois de sair do Barão Vermelho entoou críticas sociais e políticas, como discuti no livro “Brasil: Cazuza, Renato Russo e a transição democrática”, dedicado à Sociedade Viva Cazuza, bela iniciativa de 30 anos com final recém-anunciado para dezembro (apoios seguem bem-vindos até lá).
Uma tentação inicial seria lembrar “Brasil”, “Ideologia” ou “O tempo não para”, letras que Cazuza, roqueiro depois adepto de outros ritmos, chamou de “trilogia da esperança”. Queria eu indicar “O Brasil vai ensinar o mundo”, mas nada seria mais anacrônico (e alienado) neste contexto de vexame global do que alegar dar lições da “arte de viver sem guerra”, “ser alegre” e “respeitar o seu irmão”. Então, elejo “Um trem para as estrelas” (“Correm pra não desistir/ dos seus salários de fome/ é a esperança que eles têm”). Ponto de virada pra seu maior engajamento, a letra musicada por Gilberto Gil fala da vida sacrificada dos mais pobres. E, pena, ecoa a crise da vez, de desemprego crescente.
Por fim, destaco “A lei”, espécie de sequência de “Sociedade Alternativa” que Raul Seixas gravou em 1988. No disco lançado às vésperas da Constituição, ele frisava direitos de todo homem como “pensar o que quiser”, “amar a quem quiser”, “viver como quiser” e “morrer quando quiser”. Há recado mais bem-vindo — e, espera-se, sempre atual — do que esse? Fica o convite a tocarmos Raul.
Mario Luis Grangeia é pesquisador, jornalista, doutor em Sociologia pela UFRJ e especialista em Sociologia Política e Cultura (PUC-Rio). É autor de “Brasil: Cazuza, Renato Russo e a transição democrática” (Civilização Brasileira). Lança em breve, com Albenides Ramos, o livro “Conectando as ciências humanas” (Appris).