Assim como a Clarice Lispector, sou uma pessoa ocupada. Ao contrário dela, não tomo conta do mundo.
Minhas ocupações são outras, mais mundanas. Escrevo, projeto, desenho, fotografo. Passeio e alimento os cachorros. Cuido de seis floreiras, com pés de amora, pitanga, manjericão e maria-sem-vergonha (creio que esse nome deva ser logo problematizado pelos politicamente corretos, se é que já não o foi e eu é que não fiquei sabendo).
Se não tomo conta, pelo menos acompanho, de longe, o vai e vem das pessoas, como quem se distrai com o afã das formigas cortadeiras.
Eventualmente, uma dessas pessoas-formiga se destaca da fila dos que correm por correr, falam por falar, carregam suas bolsas porque precisam de algo para carregar.
Ontem à tarde, uma mulher empurrava pela ciclovia um carrinho de supermercado, cheio de galões de água. Acompanhei-a com o olhar, até que parou junto a uma enorme Ficus religiosa (figueira, para os íntimos), abriu um dos galões e começou a regar. Não a árvore em si — cujas raízes são capazes de ir matar a sede no canal, no lençol freático — mas as mudinhas de jiboia que até outro dia não estavam ali, junto ao caule.
Então era ela, a que vem espalhando mudas de lírios, arecas e jiboias ao longo da pista por onde passam, velozes, corredores e ciclistas. A que depois, com a água que traz em galões, num carrinho de supermercado, cuida da rega.
É ela, a que transformou num pomar o canteiro central — com mudas etiquetadas, mas plantadas tão próximas umas das outras que logo irão se sufocar mutuamente.
Um a um, esvaziou os galões, sem esperar que se cumprissem as profecias de chuva, anunciadas pela meteorologia e diariamente desmentidas pelo céu azul.
De manhã, eu tinha acompanhado outra pessoa-formiga, que também carregava um galão (pessoas carregando coisas sempre me chamam a atenção, talvez por se tornarem mais parecidas às formigas com quem as comparo).
Era um homem de idade parecida à dessa mulher — aquela idade indefinida de quem já não faz planos para daqui a dez anos. Parou em frente ao muro da escola, abriu o garrafão, debruçou-se na grade e despejou lentamente a água pela fresta.
Não regava planta alguma: matava a sede dos gatos, isolados no pátio da escola que não tem data para reabrir. A escola cujo zelador não aparece há meses. Cuja cantineira não deixa mais os restos de comida em potes improvisados.
Há, na minha rua, duas pessoas-formiga, carregadeiras de água para plantas, para gatos.
Suponho que a umidade de outubro, na sombra à beira do canal, seja suficiente para a vegetação recém-plantada. Que os gatos possam pular o muro e ir matar a sede em algum lugar. Mas é bom saber que há pessoas que, ao contrário de mim, não supõem nada. Em vez disso, abrem as torneiras, enchem galões e vão dar de beber a uma trepadeira, a um arbusto, a um bando de gatos esquecidos.
Ao contrário da Clarice Lispector e de mim, devem ser pessoas desocupadas. Mas que, em vez de apenas observar, efetivamente tomam conta do mundo.