“Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria”, escreveu o Manuel Bandeira.
Eu já tomei religião. Hoje tomo etimologia.
Nos tempos de tomar religião — já lá se vão quase cinco décadas! — me encantava o milagre de a galinha ser subitamente tomada por uma febre (que ela, coitada, interpretava como instinto maternal), aboletar-se sobre uma dúzia de ovos (fossem seus ou de colegas de poleiro) e dali só sair quando o que era para ser ovo cozido no café da manhã começasse a trincar e viesse à luz uma coisa gosmenta e desengonçada que apenas alguém com o espanto nato de uma ave chamaria de filho.
Meu avô costumava me levar até o galinheiro para testemunhar esse milagre, e também o milagre seguinte, que era a coisa gosmenta e desengonçada, em contato com o sol e o vento, se cobrir de penugem e sair piando pelo quintal.
Como podia o mesmo ovo — em sete minutos na chaleira, em 21 dias no ninho — guardar destinos tão distintos?
Abandonada a igreja, e já tornado fiel no culto da etimologia, descobri que as palavras também estão grávidas de mistérios, de possibilidades. Faladas no dia a dia são ovo cozido, frito, desfigurado em omelete; protegidas nas páginas dos dicionários se transfiguram em pinto de um dia – ciscando chão, bicando grilo, garantindo sobrevida àquela que, mais cedo ou mais tarde, estaria fadada a ser servida ao molho pardo num domingo.
Consideremos o verbo “considerar” e o substantivo “desastre”. O verbo pode ser trocado, sem grandes perdas, por julgar, crer, ponderar, respeitar — e o substantivo por acidente ou fracasso. Mas para os que veneram a Palavra, “considerar” é “con” + “sidum”: levar em conta o que dizem as estrelas. Daí vêm “sideral” (relativo aos astros), “siderado” (atônito, estupefato, fulminado sob a influência dos astros), “desejar” (“desiderare”, fixar atentamente as estrelas).
De outra palavra latina para estrela, “aster”, vieram “asteroide” (parecido com uma estrela) e “desastre” (quando os astros não são favoráveis). E ainda “asterisco” (uma estrelinha!), e até a libra esterlina (de “aster” para “star” terá sido um pulo).
O dicionário do meu avô (“dictionarium “: coleção de palavras, de coisas ditas) era mais fabuloso que a Bíblia (papel, livro), e, por isso, o item mais consultado da pequena biblioteca que tínhamos em casa. Ali também se operavam milagres (de “miraculus”, o que causa admiração, e que vem de “mirare”, olhar com espanto).
Neste ponto nos encontramos — eu, o menino de olhar admirado diante do que podiam conter um ovo e uma palavra, e a galinha, com seu olhar de eterno espanto — se não pela palavra, certamente pelo mistério (de “mysterion”, rito ou doutrina secreta) que só seus 21 dias de febre revelariam.
Aliás, uma febre às avessas — hoje sei que as galinhas baixam a temperatura quando estão no choco, para desacelerar o metabolismo. Mas no tempo da religião as galinhas eram febris e os pintinhos eram um milagre.
Hoje me maravilho igualmente com o ovo e com as estrelas. Passei a ter, como Manuel Bandeira, todos os motivos — menos um — de ser triste quando abjurei da fé e me tornei devoto da etimologia.