Cada vez que saio de carro, seja em viagem, seja para ir ao mercado, cato na estante um número de CDs com duração mais ou menos equivalente à do trajeto. Daí às vezes descer com disquinho só, às vezes com uma sacola.
Raramente a escolha do que vou ouvir é aleatória. Quando tenho saudades de Minas ou de mim — o que costuma dar na mesma — pego os discos do Milton Nascimento. Se a saudade for de uma época específica, lá vou eu procurar a Cesária Évora, o Itamar Assumpção, o Peter Gabriel, o Philip Glass, o Simonal, a Gretchen.
Ontem (ontem para mim que escrevo neste sábado nublado, e que pode ser anteontem ou semana passada para você que está lendo) me deu vontade de voltar aos meus 27 anos. Foi a idade em que me dei conta de que tinha virado adulto (sim, já tive a ilusão de que ia ser adulto um dia). Morava em Esmeraldas, no interior de Minas, era bancário e professor, e meu disco preferido era “Chico & Caetano”, o registro dos melhores momentos do programa que os dois faziam na Globo.
Busquei o CD (que nunca sei se está na prateleira dos Chicos ou na dos Caetanos) e lá fui eu para a Zona Sul, sem imaginar aonde essa trilha iria me levar.
Já na Avenida das Américas, o primeiro estranhamento: Caetano canta “Tava jogando sinuca / uma nega maluca me apareceu” antes de emendar com Billie Jean, do Michael Jackson. Caetano não cantaria isso hoje, pensei. “Nega maluca” — seja o bolo, seja a fantasia de carnaval — virou expressão de racismo e gaslighting. Michael Jackson evoca pedofilia.
Na faixa seguinte, Jorge Ben (ainda não era Benjor, eu acho) vem com “Você trocou uma princesa / uma princesinha por um dragão. / (…) / Roberto, corta essa / pois lugar de dragão / é na caverna”. O que diriam as feministas, com seu discurso contra os padrões de beleza impostos pela sociedade? Será que o Jorge Maravilha era machista, e eu nunca tinha notado?
Em São Conrado entra em cena Piazzola, e o diálogo entre bandoneón e violoncelo em “Adiós, nonino” avisa que abriu-se o portal de todas as perdas. Meu avô, minha avó, meu pai, os amigos que se foram antes da hora (porque nunca é a hora de avô, avó, pai, amigos irem embora). Piazzola também está morto, mas outro dia mesmo, embevecido, eu o ouvia no Teatro Nacional, em Brasília.
No túnel, entra Elza Soares e dá o “Tiro de misericórdia”: “Oxum trouxe pedra e água da cachoeira / em seu coração de espinhos dourados. / Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar / e um batalhão de mil afogados”. Sei a letra de cor, sei aonde isso vai dar: nas lágrimas enchendo os olhos quando ela disser, com aquela voz que ela inventou e que ninguém mais tem, que “Nana-Buruquê trouxe a chuva e a vassoura / pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos”.
Os mortos nem me esperam chegar à Lagoa para se sentar no banco do carona, me espiar pelo retrovisor, no banco de trás. Vem Beth Carvalho (“Minha doce companheira / se mandou de Madureira / seja o que Deus quiser”). Vem Tom Jobim (“É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol”). Vem Cazuza (“A vida vai seguindo assim / não tenho quem tem dó de mim / tô chegando ao fim”).
Estavam todos vivos, como eu, outro dia mesmo. Mas esse “outro dia mesmo” foi há três décadas, e eu não sabia que três décadas passavam assim, num sopro, num átimo.
Então Chico canta que “É natural / que num cochilo de agosto / surja um outro alguém do sexo oposto”, e eu me pego pensando que isso hoje soaria a homofobia. Estou entrando no Rebouças quando Chico, Caetano, Rita Lee e Luiz Caldas (que fim levou o Luiz Caldas?) começam “Merda”.
A canção foi proibida pela Divisão de Censura da Polícia Federal por “linguagem imprópria” (não entenderam que “merda” ali não era palavra; era “Boa sorte!” na gíria de teatro) e por mencionar “a loucura do amor/ da maconha, do pó, do tabaco e do álcool”.
Aproveito que está tudo engarrafado e vejo no encarte que o engenheiro de mixagem era conhecido como Gordo. Só o que faltava: meu disco preferido de quando eu achava que era gente grande também é gordofóbico.
Vivi o suficiente para ser do tempo em que um militante qualquer se achará no direito de dizer que Caetano era racista, Chico era homofóbico, Jorge Ben era misógino. E reclamar da censura nas redes sociais.
Ao fazer a curva que me fará desembocar no Cosme Velho, concluo que também eu estou velho. Velhíssimo. E ainda não virei adulto, como imaginara naquele 1986 em que o mundo tinha problemas demais, e não precisava que que ficassem problematizando tudo. E em que ninguém do meu (então) disco preferido estava morto.