Há muitas bruxas se reconhecendo em 2020. Viramos tendência de hashtags, mas, na essência, percorremos longa via para que o sagrado feminino possa ser agora um tema abordado pelo senso comum. E mesmo o mais católico, quando acende uma vela com alguma intenção na Lua Nova, está, na verdade, honrando a magia ancestral.
A fogueira de hoje desceu ao nível da cruz dos homens, mas segue ardendo nos padrões arraigados ao patriarcado, nas relações disfuncionais ou abusivas de toda a classe. Seguimos queimando, sobretudo quando mulheres que honraram a magia outrora erguem o dedo índice condenando outra do mesmo gênero. A brasa segue aí no julgamento. É uma estrada semeada por muitas, além do ciclo de vidas, para que hoje se possa falar de uma grande mãe cósmica, não só um Deus pai, mas a Deusa mãe, para que o ser bruxa já não seja tabu, e, sim, algo tão atrativo.
Na infância, deparei com essa sensitividade apurada: em diários primários, já havia uma alma velha escrevendo sobre uma “Grande Senhora Negra”, e era uma referência à mãe Lua. Ainda adolescente, certa vez, redigi uma invocação para que uma protetora se identificasse. Não achei que fosse nada de mais, porém, à noite, um ser etéreo feminino apareceu no meu quarto. Anos depois, correndo na praia, à noite, avistei três espíritos unidos em uma forma de luz. À época, guardava esses episódios nos bolsos internos; somente contava amenidades como sonhos premonitórios mais simples.
Comungando dessa particularidade, a escrita sempre veio naturalmente, canalizada, para mim. E, na acepção pagã, aceito ser canal para que a magia se materialize nas páginas, o que pode se assemelhar a uma teia enorme de conexões a lugares distintos, como linhas do metrô de uma grande metrópole — um acesso a essas linhas do tempo que te joga para a frente e para trás nessas memórias de vidas pregressas. No auge da quarentena, escrever um romance histórico, baseado em memórias de vidas passadas, trouxe um fluxo criativo impactante, em que, por vezes, era mais prazeroso viver no século XV, fugindo da inquisição.
A bruxa troca de roupa quando reencarna e costura as próprias vidas em um carretel extenso de muitas existências. Recordar isso pode parecer vasto demais para o cérebro físico. É dissolver o raciocínio tridimensional para perceber que sua alma, neste planeta, pode ter dez mil anos. A alma se reconhece bruxa, assim como se reconhece um gene recessivo predominante. Onde se herda a magia em linhagem familiar ou se recorda uma herança de vidas passadas, algo além dos sonhos premonitórios ou vestígios de mediunidade recorrente. Mas, jornada constante, onde a roda das vidas te empurra a uma transmutação necessária de micro e macroeventos.
Comparar a bruxa ancestral com a atual exige complexidade. A magia vem sendo enlatada e há que se ter cuidado para observar onde isso não é genuíno mas um chamariz para angariar seguidores que não buscam a fé, mas projeção. A inquisição hoje é o ego travestido de essência para parecer ser e não honrar a espiritualidade na realidade diária. A bruxa ancestral precisava proteger a própria vida e hoje a verdadeira luta para não se tornar um personagem camuflado em um altar vazio em oblações de mídias sociais.
A carioca Renata Vázquez é bruxa, além de escritora autodidata, formada em Direito com mestrado em Jornalismo pela Universidade de Barcelona e Columbia University. Em novembro, lança seu quinto livro, “A Bruxa de Alhambra”, que trata de temas como magia, esoterismo e sexo, na Amazon em formato físico e ebook, com distribuição mundial.