Depois da crise social trazida pela Covid-19, na qual as pessoas que mais sofrem são os pobres, muitos sem a mínima infraestrutura sanitária, sem água encanada para se desinfetar e se proteger do vírus, entendo cada vez mais a frase do meu bisavô Oscar Niemeyer: “Meu querido, fudido não tem vez”. E olha que é exatamente o contrário do que recomenda a OMS: lavar as mãos.
Grande parte das casas não têm um mínimo de ventilação ou até mesmo uma janela que seja. Como a pandemia escancarou a desigualdade social do Brasil e nos revelou essa terrível situação, penso, de novo, no legado e na sabedoria do meu bisavô, o “dindinho”, — era assim que chamávamos Oscar Niemeyer, que sempre se referia aos excluídos com preocupação e fraternidade.
Convivi intensamente com ele, quase em tempo integral, como bisneto e arquiteto. Como seu colega de profissão, trabalhei no escritório, em Copacabana, que era o seu QG, e morava em sua casa, em Ipanema; portanto, o contato era diário. Ao lado dele, um dia nunca era igual ao outro, sempre procurado por artistas brasileiros e internacionais, políticos, personalidades, reis e integrantes do MST.
Com ele, trabalhei em vários projetos e principalmente no “Caminho Niemeyer”, em Niterói. Não tinha um dia em que eu não ouvisse dele que “a vida era bastante injusta com os mais pobres”. E repetia aos quatro ventos a sua célebre frase: “O importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar”.
Toda a vida familiar girava em torno do meu bisavô. Durante a ditadura militar implantada no Brasil, em 1964, os seus amigos próximos passaram a ser perseguidos, presos, torturados. Invadiram a sua editora, que publicava a famosa Revista Módulo, dedicada à arquitetura e às artes. A permanência dele no Brasil tornou-se impossível devido às perseguições e prisões que atingiram, dentre outros, o seu amigo Luiz Carlos Prestes, que ele chegou a esconder em um imóvel que tinha no bairro da Glória.
Temendo por sua vida, ele optou por viver o seu exílio voluntário em Paris, para onde fugiu em 1967. Minha saudosa mãe, Ana Elisa Niemeyer, também arquiteta, acompanhou o avô durante sua passagem pela França e trabalhou com ele. Por isso, acabei nascendo em Paris e voltei para o Brasil ainda muito criança. Naturalizei-me brasileiro, tenho bastante ligação com a cultura francesa e o sonho de também ter essa nacionalidade, como a minha segunda pátria.
Mas foi só em 2012 que consegui minha certidão de nascimento na Clinique du Belvédère, em Boulogne Billancourt, na Île-de-France, em Paris. Devo isso ao empenho da minha mulher, Cris Camargo, que, através de uma minuciosa pesquisa, conseguiu localizar a maternidade onde nasci, e juntos fomos buscá-la.
Foi emocionante ter esse documento em mãos e conhecer a maternidade onde vim ao mundo, em um país longe da pátria dos meus pais e do meu bisa Oscar. Com a certidão, parecia que eu tinha nascido pela segunda vez. Para aumentar nosso encantamento, a maternidade funciona em um esplêndido edifício histórico belíssimo; foi um antigo pavilhão de caça do imperador Napoleão III.
Tenho a arquitetura na veia. Venho de três gerações de arquitetos: meu bisavô Oscar, minha mãe e meu pai, que também tem o mesmo ofício. Ele é paulistano, descendente de libaneses e alemães, e eu, que acabei escolhendo essa profissão familiar.
Considero Oscar Niemeyer uma pessoa que viveu intensamente, trabalhou muito e se divertiu muito também. Fui a única pessoa da família, por morar com ele, a presenciar a cerimônia de seu casamento, aos 99 anos, em 2006, com a sua secretária, D. Vera Lúcia Guimarães.
Ao sentir uma certa resistência na família, não titubeou em se casar escondido. Organizou tudo secretamente. O casamento aconteceu em sua casa, em uma tarde, num ambiente muito simples, apenas com um juiz de paz e dois advogados. Esse era o meu avô Oscar Niemeyer, o grande arquiteto, o amado “dindinho”.
Portanto, nossa vida sempre foi atrelada ao Oscar; por isso, hoje, com esta situação de crise no Brasil e no mundo, fico pensando nele.
Para manter a chama de seu legado e matar a saudade, criei o Instituto Niemeyer, que contou com a assinatura dele no estatuto de fundação da instituição, dedicada à cultura, meio ambiente, arquitetura e trabalhos sociais.
Meu bisavô sempre foi vanguarda. Na minha visão, destaco como características da escola modernista os vãos livres e as janelas amplas, que mantêm sua funcionalidade, ideal neste momento em que estamos vivendo hoje. O modernismo oferece respostas eficientes por questões impostas pela Covid-19. “É uma arquitetura voltada para o bem-estar e a integração com o meio ambiente, e que se mostra cada vez mais contemporânea”.
A minha mais recente empreitada para homenagear Oscar Niemeyer será a inauguração do “Espaço Niemeyer”, projeto que infelizmente foi interrompido devido à pandemia. Tive que desacelerar a obra, rever o projeto, que estou finalizando agora, no Shopping Citta América.
No térreo, o Espaço Niemeyer reunirá vários ambientes, todos temáticos em torno da sua vida e obra. Terá um café, um pequeno museu permanente, que exibirá peças em miniaturas de suas obras e peças de seu acervo, exposição de fotos. Também será um ponto de encontro para se falar, trocar informações, fazer pequenos shows e debates, além de realizar cursos, tudo em torno da vida e obra dele.
O Espaço também se dedicará à integração à América Latina, que é outro sonho dele e uma fixação em sua vida. Devido à quarentena, toda a programação será virtual na primeira fase e depois, quando as coisas se normalizarem, será presencial. Assim, os ideais e o legado de Oscar Niemeyer permanecerão como prova de um exemplo do que o Brasil tem de melhor.
Paulo Sérgio Niemeyer é arquiteto, presidente do Instituto Niemeyer, conselheiro estadual da Cau (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), presidente e fundador do Instituto Niemeyer e prestes a lançar o “Espaço Niemeyer”, dedicado à obra e vida de seu bisavô Oscar Niemeyer.