Saindo do deserto do Arizona, em março, no final de um estudo fotográfico para um livro e exposição chamada Superfícies, fui pego de surpresa com o fechamento das fronteiras. Chegando ao Rio, o mundo virava de ponta-cabeça, ruas desertas, lojas fechadas, poucos pedestres nas ruas, e quem circulava era difícil reconhecer, com o rosto escondido por uma máscara. Surreal! Ainda mais por estar isolado, por semanas, no deserto, não tive a menor informação sobre o que se passava. Se fosse um roteiro de cinema, seria recusado por soar completamente falso e sem sentido. Logo a seguir, surgiu um novo jargão: o “novo normal”, em que o comportamento das pessoas seria modificado sem escolha. Verdade? Não. Na minha opinião, bastante falso.
O ser humano adapta-se e readapta-se muito rapidamente, de acordo com suas necessidades mais básicas, ainda mais no Brasil, onde “a vida só existe no agora e na calçada onde estou”, e como se o amanhã não existisse. Olhando para a Europa e outros continentes, essa realidade não é muito diferente, mas a pandemia trouxe algumas novidades interessantes. Trancado pelo isolamento, com todos os meus colaboradores na produtora de cinema-tv em home office, irrequieto pelo confinamento forçado, imaginei o que poderia ser feito, aproveitando a situação.
Não sou do tipo que cultiva queixas… Se você me mandar para o inferno, vou logo perguntar como posso construir uma fábrica de ar-condicionado por lá, e aproveitar a oportunidade. Imaginei um programa integralmente gravado pela Web, sem que eu utilizasse minhas câmeras, sem transporte físico, com pessoas ao vivo, em lugares (ou cidades) separados, mas com uma boa conversa inusitada. O Manhattan Connection (programa da GNT) já fazia um formato correlato (da minha parte, nada tão original, portanto), mas traria uma forma nova de ser distribuído. Seria veiculado em uma plataforma de conteúdo que venho desenvolvendo (a ZYX webtv).
Fiquei curioso sobre a audiência que eu poderia alcançar. O programa (construído para ser uma série) chamou-se “Jogando conversa dentro”. Nele, conversamos eu, Evandro Mesquita (da Blitz), Charles Gavin (ex Titãs) e Andreas Kisser (do Sepultura) sobre a vida do Rock’n Roll na Estrada, com histórias desconhecidas do sex, drugs and rock’roll.
Com a população toda confinada, foi um estrondoso sucesso, mas eu não era o único. Como em uma catarse coletiva, todos se descobriram produtores, e as lives explodiram na Web, das simples conversas até produções muito bem-cuidadas (vejam “Diário de um Confinado”, criado pelo Bruno Mazzeo).
O que já era uma tendência, o Covid acelerou: a aceitação da Internet como um espaço de livre manifestação audiovisual, simplificando a tecnologia e eliminando gargalos de comunicação com o público. Para o bem e para o mal, as pessoas aprenderam e acostumaram-se com uma nova forma de acessar informação. Confinados em casa, com o tempo necessário para prestar mais atenção ao que estava mais próximo das suas mãos, elevaram a WEB ao mesmo patamar da TV convencional. Ultrapassaram o isolamento, comunicando-se diretamente, através dela; tornaram-se todos Netflix, Amazon ou Hulu -— exagerando um pouco: “mais poder ao povo”. O celular, como vitrine viciante, veio para ficar; o real desafio é preenchê-lo com conteúdo relevante, que difunda sabedoria e cultura importante.
Com seus funcionários confinados em casa, trabalhando em home offices, as empresas também descobriram que precisam de espaços muito menores para serem operacionais, e muito menor orçamento para locação de escritórios, estimulando o rodízio dos colaboradores no local de trabalho. Para as pessoas, mais tempo para a família e para administrar seus horários. Ou seja: até as tragédias podem trazer algum enfoque positivo e a criação de novos horizontes.
É a famosa história de um copo com um líquido pela metade: ele está meio cheio, ou meio vazio? Depende de quem olha. Na minha opinião, o “novo normal” a se perpetuar vai ser construído apenas com o que melhora a qualidade de vida imediata das pessoas (para o bem e para o mal), e não pelas obrigações que elas possam considerar inoportunas. A vida é uma jornada bela e talvez sua maior qualidade é ser imprevisível e misteriosa… E aproveitando as surpresas únicas e polêmicas de 2020, como será 2021? Alguém se arrisca a imaginar?
Ricardo Nauenberg foi diretor da TV Globo por mais de dez anos. Atualmente dirige a Indústria Imaginária, com produções em várias plataformas — na televisão, no cinema e na Internet. Dirigiu longas-metragens, séries, novelas e musicais para TV. Na área musical, produziu e dirigiu a série “Audiorretrato”, com as maiores estrelas da MPB e White Black and Blues com BB King. Foi diretor de transmissão do Rock in Rio e do Free Jazz Festival.