Como todo mundo que vê televisão, dei de reparar nas estantes que aparecem atrás de entrevistados, entrevistadores, comentaristas e, se bobear, até dos transeuntes na rua. Escrevi um texto a respeito, através do qual ganhei novos amigos, alguns inimigos e um convite para falar na TEDx São Paulo ontem (sábado, 26 de setembro).
(Para quem não conhece, o TEDx é uma série de conferências para “compartilhar ideias e inspirar pessoas”. Podem ser sobre uma infinidade de assuntos — política, ecologia, saúde, educação — e não apenas sobre Tecnologia, Entretenimento e Design, que deram nome ao evento.)
Minha fala foi especificamente sobre a ciência que inventei, a estantologia, com a qual dificilmente hei de inspirar alguém. O nome junta o sufixo “logia” (do grego “logos”, conhecimento) ao substantivo “estante” (do latim “stare, “estar, ficar de pé, ficar firme”). Estantologia é, pois, o estudo daquilo que não arreda o pé de trás de quem está fazendo uma laive ou comentando algum assunto na televisão.
Para gravar meu depoimento (que, nesta edição, não foi presencial), ajustei o celular no tripé, me certifiquei de que portas e janelas estivessem bem fechadas (para evitar que os palavrões gritados na quadra de tênis, 8 andares abaixo, não roubassem a cena), fiz uma novena para a vizinha de cima dar uma trégua na sua missão de arrastar móveis em modo perpétuo, e me posicionei (claro!) na frente da minha estante.
Só que ela, tal como estava, não me representava. A coitada nunca mais foi a mesma desde que caí na asneira de pedir à diarista que fizesse uma faxina ali. A ideia era que tirasse o pó — dos livros e das prateleiras — e só.
Quando voltei para casa, ao fim do dia, senti algo diferente no ar. Não era nada físico — as cadeiras alinhadas, as almofadas aninhadas no sofá ou o chão sem pelo de cachorro. Havia um estranhamento no ambiente. Uma presença, um jamevu — que é um déjà vu ao contrário. Uma sensação de irrealidade.
Era a estante. Nada estava onde devia estar, onde havia estado por anos, numa ordem diligentemente definida por parâmetros que nem eu mesmo saberia decodificar.
Como numa partitura em que todas as notas mudassem de lugar, os livros tinham sido retirados, limpos e recolocados — mas aleatoriamente. Eu não conseguia mais achar nada, e não acreditava no que tinha acontecido.
A sensação não me era de todo estranha: já tinha passado por isso uma vez, quando perdi o talão de traveller checks, a passagem e o passaporte num aeroporto estrangeiro. Só que dava para cancelar os traveller checks, conseguir nova passagem e mandar emitir outro passaporte. Ali, diante da estante revirada, o desamparo era maior.
Sem contar que eu não podia gravar minha fala com qualquer livro atrás de mim. Não é só o corpo que fala, como no clássico do Pierre Weil. A estante também fala – e a minha não dizia coisa com coisa.
Esvaziei as prateleiras que ficariam no enquadramento e fui colocando lá o que eu queria que aparecesse. O Cervantes que não li, o Harari, o Jordan Peterson, o Millôr, o Drummond, o Cartier-Bresson, a Cecília, a Clarice, a Hilda Hilst, a Adélia Prado, a Sophia. Queria colocar o Manoel de Barros e o Guimarães Rosa, mas cadê que eu os achava? Onde é que estariam o Lewis Carroll, o João Cabral, o Karnal, o Narloch? Eu tinha que ser rápido e aproveitar a luz, o silêncio.
Fiz o que pude e gravei.
Agora tenho a mesa atulhada de livros, esperando para voltar ao lugar de onde nunca deveriam ter saído. Recebi a sugestão de organizá-los por cor. Tentei — não rola. Risério junto de Dawkins, Daudt, do Laplanche, as piadas do Casseta e o Pondé, ainda vai. Mas, lado a lado Lula, Lorca, Laurita Mourão e o curso de Tagalog? Não.
Tentarei uma regressão à estante passada. Para felicidade da Damares, vou separar por gênero — poesia, romance, crônica, filosofia. Para desespero do Marcos Bagno, vai ser por ordem alfabética.
Da próxima vez, eu mesmo tiro o pó.