Não faço ideia de como — ou quão consensual — terá sido a decisão de que a Idade Moderna começaria na manhãzinha de sábado, 29 de outubro de 1453, e terminaria ao cair da tarde de terça-feira, 14 de julho de 1789. Jamais se saberá o horário preciso, mas é melhor assim — é um dado a menos para cair no Enem.
Da mesma forma, o planeta foi dormir moderno naquele 14 de julho (moderno para os parâmetros da época, claro) e acordou contemporâneo na manhã seguinte.
— Está sentindo algo no ar, Mademoiselle de Chantilly?
— O mesmo de sempre, Marquês de Ratatouille. Cheiro de repolho, camembert vencido, dentes não escovados e pena de ganso.
— Não, Mademoiselle. A Idade Contemporânea!
— Ora, estimado Marquês, todas as idades foram contemporâneas. Contemporâneo quer dizer…
— Eu sei, eu sei. É do air du temps, do Zeitgeist, que estou falando.
Não, esse diálogo nunca aconteceu. A doce Mademoiselle de Chantilly e o vigoroso Marquês de Ratatouille já haviam se despedido de suas esplêndidas cabeças (ou suas cabeças já se haviam apartado de seus não tão esplêndidos corpos) naquela manhã em que o mundo se cansou de ser moderno e resolveu ser contemporâneo.
Contemporâneos estamos desde então, sem dar a menor pelota para as grandes mudanças políticas, econômicas e sociais ocorridas desde então. Houve a Revolução Industrial, o Cubismo, a Primeira Guerra, a Revolução Russa, a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o 7 x 1 — e nada de a Idade Contemporânea acabar. A corrida espacial acabou, o Orkut acabou, os discursos do Fidel Castro acabaram e a Idade Contemporânea prossegue, impávida.
Não há nenhuma retomada de Constantinopla anunciada nos eventos do FB, nenhuma recaída da Bastilha nas colunas progressistas do UOL. Mas um sonho esta noite me deu uma pista — ou um espóiler: estreia em novembro a quarta temporada de “The Crown”.
Se há algo muito injusto neste mundo (ou em quantos mundos habitados houver) é termos pregação do R. R. Soares todo santo dia, e “The Crown” só uma vez por ano, e em conta-gotas.
Estão previstas mais algumas temporadas, além desta que estreia daqui a dois meses. O que significa que passaremos por mais um exercício de decepção, sedução, paixão e de desapego. Nem bem cicatrizou a perda dos atores da primeira e segunda temporadas, e lá vamos nós ficar viúvos do elenco da terceira e da quarta. Traímos Claire Foy com Olivia Colman, Vanessa Kirby com Helena Boham-Carter, e novos adultérios se avizinham.
E o que tem isso a ver com a Mademoiselle de Chantilly, a derrota da Alemanha nos campos da Europa ou a derrota para a Alemanha no gramado do Mineirão? O fim de uma era.
Exceto os centenários — ou beirando isso —, não há vivente que tenha ouvido a expressão “Rei da Inglaterra” fora dos livros de História. A Rainha Elizabeth parece ter existido desde sempre, assim como a Torre Eiffel ali perto do Sena, a Estátua da Liberdade ao sul de Manhattan ou Cristo encarapitado no topo do Corcovado. E 150 anos atrás nenhum desses ícones estava onde está — monotonamente servindo de fundo para fotos ou, monocromaticamente saudando os súditos e os turistas na sacada do Palácio de Buckingham.
Haverá um dia em que, numa temporada de “The Crown”, o cetro, a coroa, o manto e o gerenciamento dos perrengues de uma família realmente disfuncional serão passados a um descendente — filho, neto, talvez bisneto — do sexo masculino. “Ser uma espécie de Rainha da Inglaterra”, como comparação para reinar, mas não governar, perderá o sentido. Teremos que nos habituar a “Rei da Inglaterra” significar a mesma coisa. E não será a mesma coisa.
Os selos perderão aquela efígie graciosa. A escala Pantone, sua mais ilustre divulgadora. O mundo contemporâneo, tal como o conhecemos, deixará de existir.
Depois das idades antiga, média, moderna e contemporânea, será que virá a era pós-elisabetana? Talvez os historiadores do futuro, insensíveis aos casaquinhos, chapéus, luvas e colar de pérolas da monarca, escolham como marco a segunda-feira, 21 de julho de 1969, em que um americano pisou na lua (o módulo pousou um dia antes, mas máquina pousar na lua não conta). Talvez outra segunda-feira, 6 de agosto de 1945, quando a bomba explodiu sobre Hiroshima. Talvez o dia (data ainda por desvendar) em que o primeiro humano disse “Alexa, toque Elymar Santos” — e Alexa tocou “Taras e manias”, inaugurando uma nova era na robótica.
Se depender de mim, vai ser no dia em que Lord Pudding oferecer, às 17h01, uma cup of tea a Lady Gingerbeer e ela responder “I am bloody sorry I must decline”.
Ambos hão de se entreolhar e correr pra os tabloides, temendo pelo pior e antevendo que a Idade Contemporânea chegou ao fim.
Foto grafite: Regg & Violant (Portugal)