Yom Kipur é a oportunidade dada por D’us de virar a página de nossa vida e acreditar em nossa capacidade de melhorar. Devemos corrigir os erros, mas isso não significa nos tornarmos reféns do passado, incapazes de olhar para o futuro. Os mestres têm razão ao indicar que o perdão autêntico não nasce de uma regra moral ou de uma imposição religiosa. Ele surge principalmente da observação dos nossos estados emotivos carregados de negatividade, e que impedem o perdão.
Todos temos momentos bons e momentos ruins na vida. Todos também achamos, num momento ou noutro, que o culpado por nossos problemas ou dissabores é outra pessoa. Ficamos zangados e magoados com ela — sem, muitas vezes, pesar a nossa própria responsabilidade por esses problemas ou dissabores. Fato é que alguns de nós têm a tendência a prolongar esse sentimento muito além do acontecimento. Isso se chama ressentimento. Por vezes, deriva para o rancor — ou, no pior dos casos, para o ódio.
Às vezes, ficamos presos nesses sentimentos. Tornamos incapazes de sentir confiança ou alegria frente às diferentes situações da vida. Ficamos como que ancorados num episódio passado. Mesmo ocasiões até bastante felizes, em que teríamos todas as razões para contentamento, acabam tingidas por aquela mágoa, aquele pensamento negativo no nosso eu.
Como remover isso? A questão, na verdade, é tentar despersonalizar, levar para o pensamento coletivo, entender a circunstância. Não se trata tanto de considerar se a pessoa merece perdão ou não: ao não perdoarmos, no fundo, admitimos que ela queria nos magoar — o que muitas vezes não é o caso.
E quando é o caso, ao não perdoar, colaboramos, num certo sentido, com a intenção: sem o perdão, deixamos o efeito de sua má ação se prolongar, e assim fazemos mal a nós próprios. Então, não se trata mesmo de a pessoa merecer ou não perdão. É mais que isso: nós, alvos de má ação, é que merecemos o perdão — para finalmente termos paz de espírito.
Há alguns dias, em minha casa, meu filho dizia que certas coisas não merecem perdão. Ele fazia alusão ao Holocausto. Independentemente do assunto, julguei intrigante a leitura de um jovem de 13 anos a esse respeito. Existe limite para o perdão? Será possível que, ao longo dos anos, possamos flexibilizar nosso sentimento, amadurecer nossas análises e rever o sentido do que significa tolerar, perdoar, entender?
O que Amalek (nação descrita religiosamente como eterna inimiga dos judeus) fez contra nós está inscrito em nossa memória. Sempre nos oporemos àqueles que negam a verdade ou que desejam expurgar nossa memória. Não perdoaremos nem esqueceremos. Sou radical nesse assunto porque atitudes de intolerância se repetem ao longo da história — e quando isso acontece, o perdão pode não ser possível.
E a saúde? Pesquisas revelaram os traços cognitivos e emocionais (e até espirituais) de perdoar as pessoas — inclusive se o perdão é orientado pela fé ou pela empatia, e entendendo seu significado como “deixar que as emoções negativas fiquem para trás” — ou que sejam deixadas de lado de vez.
Por isso que principalmente a autocompaixão e o perdão têm sido implicados no curso de algumas doenças em saúde mental. Os benefícios de perdoar parecem ser muitos: estudos relatam associações significativas entre níveis mais altos de perdão e autocompaixão e níveis mais baixos de automutilação ou ideação suicida, por exemplo. Estudos sugerem ainda que a autocompaixão ou o autoperdão podem enfraquecer a relação entre os eventos negativos da vida e a autoflagelação.
Parece existir também uma relação entre o perdoar e os resultados de sintomas depressivos, ou seja, a presença de sintomas depressivos é um previsor da redução do perdão interpessoal, e o alívio dos sintomas depressivos tem papel protetor no processo adaptativo das relações interpessoais.
A hostilidade está associada ao desenvolvimento de mais comprometimentos cognitivos ao longo de vários anos, e ser mais tolerante parece mitigar esses efeitos relacionados à hostilidade na cognição. Em nosso próprio hospital, médicos acreditam que o sentimento ruim e o não perdoar podem prejudicar nosso coração.
E vivemos um momento no qual se buscam responsáveis por uma pandemia. Há como responsabilizar alguém por algo dessa natureza? A verdade é que estamos, há mais de seis meses, vivendo um processo de profunda reflexão, como se o período entre o Ano Novo e o Yom Kipur se mostrasse presente de forma prolongada.
Deixemos de lado aspectos da pandemia e pensemos em quando na vida tivemos oportunidade de refletir tanto sobre nossos atos, nossas relações, atitudes. Não tem sido uma vez ou outra que escuto que sairemos de todo este momento melhores. De minha parte, o que posso dizer é que uso todos os dias do ano (do calendário lunar e do calendário solar) para ser melhor, e quem sabe seja esta a grande missão do nosso Judaísmo. Ser judeu é muito mais do que seguir um calendário: ser judeu é praticar o Judaísmo. Quem sabe assim você possa entender o que flexibilizar na vida, o que tolerar, o que perdoar.
Ainda ontem, meu segundo filho me questionou se somos muito ou pouco judeus — o “muito” ou o “pouco” na cabeça dele estão no rito da ortodoxia. O que posso dizer, meu querido filho, é que, para ser judeu, temos que fazer muito mais que cumprir datas em calendários religiosos. Para ser judeu, é preciso sentir-se judeu, praticar atos pautados por valores de tradição milenar. Portanto, quando você, todas as semanas, vê que rezamos em casa, fazemos questão de comemorar as principais festas, que seus pais abraçam causas de nossa comunidade — isso é o Judaísmo.
É dentro dessas missões que gostaria de encerrar minha mensagem. Missões superam objetivos, pois, se os caminhos não nos trazem prazer, melhor não buscar o que almejamos. Valores são princípios de toda religião, e o mundo busca um universalismo religioso pautado por ética, tolerância e justiça social. Isso é uma crença comum a qualquer religião — e digo mais: é a crença também daqueles que não têm religião.
E aqui o meu desejo dentro deste universalismo para uma sociedade que deve minimizar as razões para perdoar erros, desencontros e equívocos, e que deve construir uma base de entendimento que supere as diferenças. Sejamos todos inscritos no livro da vida.
O médico Claudio Lottenberg é presidente do conselho do Hospital Albert Einstein, presidente do Instituto Coalizão Saúde e mestre em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp). E, ainda, um dos líderes da comunidade judaica do Brasil. Nessa segunda (28/09), foi comemorado o Yom Kipur, o “Dia do Perdão”, uma das datas mais importantes do judaísmo.