Em plena pandemia de Covid-19, comemorei 96 anos no último dia 25 de julho, e, por causa da quarentena, estou em prisão domiciliar, com a minha mulher, Evonete Belizário, desde março. A minha vida sempre foi andar atrás de lugar de samba e, fazendo samba, conheci muita gente. Nunca fui boêmio; eu ia aos bares para beber cerveja e conversar com os amigos, com muita cantoria e ajuntamento de gente. Tinha uma festa boa em uma gafieira, eu ia pra lá.
Na hora que aconteceu, essa infeliz pandemia mexeu com todo mundo das artes, com o povo da música, do teatro, da televisão. Os artistas ficaram aborrecidos e querendo saber como iam se virar. Eu sempre vivi da minha música, dos meus shows, dos meus quadros. Então, perdi muita coisa em matéria de shows, dinheiro, e quase perdi amigos. As autoridades não souberam sentir o que estava ameaçando a humanidade?
Agora, minha vacina é passar os dias lendo jornal e tudo que vejo pela frente, escutando discos e pintando os meus quadros com as cabrochas, os barracos, o morro. Então, me sobra tempo para recordar: são 55 anos na Mangueira. Tudo começou em 1965, quando o José Ramos compôs um samba sobre o rio São Francisco, e eu musiquei. Na época, era samba de concurso, que era o melhor, disputado no terreiro, na Praça XI. O nosso samba teve uma boa aceitação, mas acontece que o Cartola e o Galo também fizeram. Mas eles disseram para a diretoria que o samba que mais cabia no enredo era o meu e do Alfredo Português. E ganhamos do Cartola!
Alfredo foi parceiro de Cartola. Ele veio de Portugal, contratado pela Marinha Mercante, e foi morar em Santa Teresa; depois, ele foi para a Mangueira. Minha mãe morava com um cidadão que estava doente, e a nossa vida era zero dinheiro. Ele conhecia esse camarada e soube que ele estava mal no Morro do Salgueiro. Foi lá e levou a gente para a Mangueira. Minha mãe juntou-se a ele, ou ele juntou-se a ela, e fomos viver a vida. De 1948 até 1950, a escola tinha suas alegorias, mas não tantos passistas. A escola foi num crescente e ainda vai crescer.
Agora, com esse vírus, muita gente tem morrido — cada compositor que vai embora é uma música que se perde. A humanidade está humilhada com essa doença. Não perco a esperança: sempre tivemos cientistas grandes que deram um jeito. Estou aguardando que isso acabe e que todos nós, eu, por exemplo, volte a fazer os meus shows”.
Nelson Sargento é artista: cantor, compositor, pintor, integrante da Velha Guarda da Mangueira e carioca, muito carioca. Tem boa parte do Rio a seus pés e, no carnaval, a cidade inteira.
Foto: Zezinho Peres