O momento é muito difícil, sabemos. Na plenitude da pandemia da Covid-19, as pesquisas revelam que, com o alto índice de violência doméstica, o feminicídio tem aumentado no mundo inteiro. Como as mulheres estão confinadas com seus agressores e distantes, os riscos aumentaram. Porém, diferentemente da pandemia, as mulheres são invisíveis, e vão crescendo à medida que passamos a conhecê-las melhor. E tudo isso me fez lembrar a singela grandeza de uma mulher, ainda que periférica: a minha avó paterna, Neusa Goulart Brizola. Nascida em São Borja, nos rincões do Rio Grande do Sul, em uma rica família de estancieiros, afastou-se de suas origens para viver o fio da História entre duas lideranças políticas: o marido, Leonel Brizola, com quem foi casada por 43 anos, e o irmão, João Goulart.
Minha avó Neusa foi moderna, era namoradeira; só se casou aos 28 anos, idade avançada para a época, em que as moças “prendadas e do lar” casavam bem mais novas. Preferiu estudar na capital, concluiu o curso Normal, dirigia seu carro e acompanhava Jango nas festas e na política, como militante. Foi em uma reunião do PTB Jovem que conheceu meu avô. Surpreso, descobriu que Neusa era irmã de Jango, seu colega de bancada. Dali, iniciaram o namoro e casaram-se em 1950, tendo Getúlio Vargas como um dos padrinhos.
Como primeira-dama do RS, dirigiu a LBA (de 1959 a 1963), onde liderou as mulheres dos políticos para as obras sociais, criou um Serviço de Bolsas de Estudos e doou 45% das terras herdadas dos pais para a reforma agrária promovida pelo marido. Minha avó nunca fugiu do embate. Um fato que diz muito sobre ela aconteceu durante a Campanha da Legalidade, em 1961, quando meu avô, governador gaúcho, reagiu contra os militares que visavam impedir a posse do seu irmão, o vice-presidente João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros.
Naquele momento dramático, após a ameaça de bombardeio ao Palácio Priatini, ela entregou seus três filhos, de 8, 6 e 4 anos, aos cuidados de uma amiga, preferindo correr todos os riscos ao lado do marido. Católica, no desenrolar daquela tragédia anunciada, acuada na ala residencial e cercada por muitos soldados e barricadas, minha avó rezava, mas sem jamais dispensar o revólver na bolsa. Com a ditadura militar implantada no Brasil, meu avô passou a ser perseguido; cada dia, escondia-se em um lugar, e o casal se separou. Abalada, ela vendeu parte de sua herança e foi para o exílio, com os filhos. Ao chegar a Montevidéu, em abril de 1964, deu entrevista ao jornal El País, e denunciou: “Viemos a um país em que se respeitam todos os direitos”.
Mais tarde, meu avô se uniria à família, e a vida seguiria. Embora acostumada com o luxo da casa paterna, onde tinha 20 empregados, durante o exílio, ela cozinhava sopões para os exilados que batiam à porta do casal. Novas reviravoltas no Uruguai, em 1977, fizeram com que ela fosse para o segunda etapa do exílio: nos EUA e Europa, totalizando 15 anos. Depois, o destino seria o Rio de Janeiro, onde foi primeira-dama, deixando-nos em 1993.
Minha avó Neusa foi submetida a muitas provas, sempre se saindo como uma mulher de coragem. Ela não foi uma coadjuvante, foi participante ativa de tudo ao lado do marido. No entanto, as mulheres não aparecem nos livros de História, nem nos filmes, onde sempre entramos e saímos caladas, invisíveis e esquecidas.
Voltando ao agora, 70% da mão de obra do setor social e de saúde (o mais afetado pela pandemia da Covid-19) é composta por mulheres, ou seja, o sexo feminino é maioria na linha de frente contra o vírus. Os países que se saíram melhor e com menos danos da crise causada pela pandemia são dirigidos por mulheres — como as ocupantes de cargos no Parlamento da Islândia, Nova Zelândia, Taiwan, Singapura, Noruega, Finlândia, Alemanha, Dinamarca e Bélgica. Entretanto, na política, as mulheres são apenas 10 dos 153 chefes de Estado eleitos em 2018, de acordo com a União Interparlamentar.
Em 2020, somos 15% na Câmara dos Deputados, 13% no Senado e 11,65% de mulheres prefeitas eleitas. Para entrar na arena política, as brasileiras têm que superar muitos obstáculos, e o primeiro deles é o de viver em um país patriarcal, machista e campeão em feminicídio, cujo mercado de trabalho restringe oportunidades para elas e oferece salários 30% inferiores aos dos homens, mesmo exercendo a mesma função. Não se trata de desinteresse das mulheres — o que existe são muitos obstáculos para elas ascenderem na política. Somos mais da metade da população brasileira, atualmente, e isso não se reflete em poder político, pois as mulheres são 15% na Câmara e 13% no Senado.
A misoginia presente na política nacional é um desafio a ser enfrentado e suscita muitas questões: para acabar com o monopólio masculino do território político, a melhor estratégia é votar com consciência de gênero e apoiar candidaturas femininas? A longo prazo, a melhor forma de garantir a presença de mulheres na política é mudar a cultura da sociedade, incentivando as mulheres, desde meninas, a ocupar espaços de poder.
Juliana Brizola é advogada, morou no Rio, formou-se em Direito na Santa Úrsula. Tem mestrado em Ciências Sociais. Atualmente é deputada estadual (PDT-RS), líder do PDT na Assembleia Legislativa do RS. Está sempre com um olhar atento às mulheres, sejam elas de onde for.